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Construção da nação portuguesa no século XIX
O
historiador contemporâneo José Mattoso esclarece algo que ilustra bem o perigo à nacionalidade colocado pelo
‘progresso dos estudos históricos’, conforme asseverara
Ernest Renan em 1882:
Ao
contrário do que tentaram demonstrar as doutrinas nacionalistas dos anos [19]30 a 60, baseadas, de resto, em conceitos
positivistas e românticos muito anteriores, não é possível encontrar vestígios coerentes de uma
nacionalidade portuguesa antes da fundação do Estado.
Segundo
Mattoso, o mais próximo do fenômeno nacional, antes de Portugal existir, não
passava de pequenas e fugazes “formações políticas tendencialmente autonômicas
na faixa ocidental da Península Ibérica (em paralelo, de resto, com formações
análogas noutras regiões peninsulares), que se verificaram desde a pré-história
até o século XII”. O
historiador destaca que a formação da consciência nacional portuguesa, assim
como a de outras partes do Ocidente, amparou-se em ideologias do romantismo e
do positivismo, as quais – juntas – atravessaram e predominaram no século XIX.
Nessa
altura, a história exerceu um papel ambíguo em relação ao fenômeno da nação.
Segundo Anthony D. Smith, “Os historiadores aparecem com destaque entre seus criadores e devotos; mas também lideraram a tentativa
de avaliá-lo e compreendê-lo”. Na própria conferência de Renan na
Sorbonne, encontramos tanto um autor preocupado
em tratar seu assunto com “la froideur, l’impartialité la plus absolue”, quanto uma postura apologética, uma vez
que “l’existence des nations est bonne, nécessaire même. Leur existence est la
garantie de la liberté, qui serait perdue si le monde n’avait qu’une loi et
qu’un maître”. Precede ao exemplo do francês Renan o do
português Alexandre Herculano, romancista, poeta e também historiador. Cumpre
dizer que ele foi, em Portugal, um dos primeiros historiadores no sentido
moderno da palavra.
Embora
entusiasta das idéias liberalistas e, com base nestas, de um ideal de
pátria-nação, na “Introdução” do romance histórico O Bobo, de 1843,
Herculano informava o seguinte sobre o
contexto das origens de seu país, tematizadas nessa obra:
As províncias já então libertadas do jugo
ismaelita não tinham ainda, digamos assim, senão os rudimentos de uma nacionalidade.
Faltavam-lhes, ou eram débeis grande parte dos vínculos morais e jurídicos que
constituem uma nação, uma sociedade. A ascensão do rei aragonês no trono de
Leão não repugnava aos barões leoneses por êle ser um estranho, mas porque a
antigos súditos do nôvo rei se entregavam de preferência às tendências e
alcaidarias da monarquia. As resistências, porém, eram individuais, desconexas,
e por isso sem resultados definitivos, efeito natural de instituições públicas
viciosas ou incompletas. O conde ou rico-homem de Oviedo ou de Leão, da
Estremadura ou de Galiza, de Castela ou de Portugal, referia sempre a si, às
suas ambições, esperanças ou temores os resultados prováveis de qualquer
sucesso político, e, aferindo tudo por êsse padrão, procedia em conformidade
com êle. Nem podia ser de outro modo. A idéia de nação e de pátria não
existia para os homens de então do mesmo modo que existe para nós.
A passagem desmente,
conforme se pode observar, a antigüidade da nação. Nos séculos XI e XII, que demarcam o período
de fundação de Portugal, não a nacionalidade do governante legitimava seu
governo, mas, sim, relações dinásticas e acordos entre a nobreza de maior
influência política. Lembremo-nos dos habituais casamentos, até pelo menos o
século XIX, entre reis, rainhas, príncipes, princesas de distintas
nacionalidades; das batalhas entre reinos, onde os nobres guerreiros rivais
cumprimentavam-se, e no mais das vezes compartilhavam de um desprezo pelos
populares, conquanto estes integrassem seus
respectivos exércitos.
Ao
desferirem duro golpe sobre as estruturas sociopolíticas do Antigo Regime, a
prática e a ideologia da Revolução Francesa condicionaram o advento da moderna
concepção de nação. De acordo com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o novo regime deveria pautar-se nos interesses da classe
burguesa, que significariam
[...] a vontade geral do “povo”, que era por
sua vez (uma significativa identificação) “a nação francesa”. O rei não era
mais Luís, pela Graça de Deus, rei de França e Navarra, mas Luís, pela Graça de
Deus e do direito constitucional do Estado, rei dos Franceses. “A fonte de toda
a soberania”, dizia a Declaração, “reside essencialmente na
nação”.
Como em
outras partes da Europa, a corte, a nobreza em geral e o clero portugueses recebiam temerosos as notícias
do processo revolucionário francês. Em Portugal, o medo atingia patamares tais,
que “Os próprios imigrados que chegavam a Lisboa, procurando emprego, nobres
escapados à guilhotina, até eles levantavam suspeita”.
Embora Dona Maria I, rainha
entre 1777 e 1792, implantasse severa censura à veiculação de idéias iluministas e revolucionárias em
Portugal e nas colônias portuguesas, não tardariam a chegar ao país
conseqüências contundentes da Revolução. Em 1799, o General Napoleão Bonaparte
assume o governo francês, apoiado por uma burguesia interessada na estabilidade
política, ausente no Terror de Robespierre, e alcançada por contínuas
intervenções do exército. Também em correspondência às expectativas e anseios
burgueses em conquistar um mercado para além das fronteiras francesas, Napoleão
procura prejudicar a rivalidade industrial e comercial da Inglaterra com um
bloqueio que contornasse todo o continente europeu. Para impor a realização
desse projeto, a França inicia uma série vitoriosa de guerras contra países
desobedientes ao bloqueio. Sem pretender confrontar o até então invencível
exército francês e tampouco a poderosa marinha britânica, D. João VI adia o
máximo possível manifestar--se colaborador ou não dos intuitos napoleônicos. As
estreitas ligações comerciais e diplomáticas entre Inglaterra e Portugal acabam
por pesar na decisão do príncipe regente de aliar-se aos ingleses. Em 1807, na
iminência de uma invasão francesa apoiada pela Espanha, a família real e a
corte lusitanas seguem o conselho da Inglaterra de abandonar o país e
refugiar-se no Brasil, instruindo a população a não resistir ao avanço das tropas comandadas por Junot.
Se o
processo revolucionário levou a França a fornecer ao mundo “o primeiro grande
exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo”, o expansionismo napoleônico contribuiu
grandemente para fomentar sentimentos nacionalistas na Europa. Ao ocupar e até
destituir monarquias, como fez à própria aliada Espanha, entregando a coroa de
Carlos IV ao irmão José Bonaparte, Napoleão revelava-se um invasor tirano
contra o qual cumpria lutar, em nome não mais apenas, como antes, de uma
legitimidade dinástica, mas também de uma legitimidade nacional. O estado francês via-se, pois, vítima da irradiação de suas próprias
idéias revolucionárias. Irradiação
que, no caso de Portugal, se deve observar com cautela. Segundo Teresa
Bernardino, a fuga da família real e da corte lusitanas traduziria uma precária
penetração no país de conceitos como nação, pátria e povo gerados e difundidos
pela Revolução Francesa. A
autora ainda informa outro dado sobre a infra-estrutura portuguesa que comprometia a existência de uma integração
nacional:
[Nas regiões rurais, predominantes no
país] O contato entre populações mesmo pouco distantes era muito limitado. E se
isso se passava nos campos, as ligações entre os que produziam e os que
consumiam eram ainda mais difíceis. Daqui se conclui que as populações
deviam ter uma débil noção de nacionalidade. A sua pátria era fundamentalmente
a vida ou aldeia onde tinham nascido.
De
qualquer forma, a ocupação francesa entre 1807 e 1810 condicionou, como em
outros países europeus, o surgimento de sentimentos nacionalistas em Portugal. Embora D. João VI instruísse a população a
não reagir com qualquer violência à invasão das tropas napoleônicas, acabou havendo conflitos de
mundividências entre os portugueses – em sua grande maioria com uma mentalidade
de contornos medievais, de educação tradicionalmente católica – e os
estrangeiros – que levavam idéias revolucionárias de aversão ao clero
apostólico e às estruturas do Antigo Regime –. Já salientei anteriormente,
citando Otto Bauer, a importância do “conhecimento da vida estrangeira” como “precondição de qualquer consciência
nacional”.
José-Augusto
França assinala que a saída do contingente real e cortês derroca o momento em
que “O ‘velho Portugal’ começa [...] o seu processo de desintegração”. O autor ainda se refere, como sintoma dos novos tempos, à
nova postura perante a figura do rei que o episódio então inédito na história
portuguesa fomentou:
A primeira caricatura política portuguesa
comentou o acontecimento; surgiu então um género que conhecerá grande sucesso,
sob o regime liberal. Era, em certa medida, o anúncio dos tempos novos em que
os reis deixavam de ser coisa sagrada. Não se cortou, é certo, a cabeça do
pobre regente D. João, mas ela foi impiedosamente ornamentada com enormes cornos
assaz alusivos. No seu maldoso retrato da corte portuguesa, a duquesa de
Abrantes não deixará de dar razão ao caricaturista – mas o que importa é
aperceber, por detrás da anedota, o fim possível de um mito.
A dessacralização
do rei revelava sua fabilidade e passibilidade de questionamento público como
administrador do país. O rei convertia-se em cidadão. Entretanto, essa
transformação de ordem política em Portugal – aonde mal a ideologia
revolucionária tinha chegado – ocorria a passos lentos. A ausência do príncipe
regente não repercutia como traição à pátria, conceito pouco conhecido nas
terras lusitanas. Segundo Teresa Bernardino,
[...] a saída do soberano para o Brasil não
suscitou a animosidade da generalidade da classe culta portuguesa nem tão-pouco
do povo “miúdo”. O apelo constante das gentes ao príncipe [em poemas, cantigas,
discursos e manifestações orais recorrentes durante a ocupação francesa] faz
pressupô-lo. O Brasil, como colônia, era parte integrante
do território nacional. O rei tinha-se apenas
deslocado para uma parcela desse território com o fim de salvaguardar a honra
da monarquia. O seu acto revestiu-se, pois, de uma
intenção patriótica e era um indício de prudência aos olhos dos contemporâneos.
Além disso, não havendo uma distinção nítida entre os conceitos de realeza e de
pátria, não se concebia como ser fiel à segunda sem o ser
à primeira.
Vimos que José-Augusto
França interpreta a fuga da família real e da corte como o início do desmantelo das estruturas do
‘Velho Portugal’, típicas do Antigo Regime. Com efeito, a presença do príncipe
regente na então mais importante colônia portuguesa, somada às cláusulas do
acordo com a Inglaterra de que se deviam abrir os portos brasileiros ao
comércio internacional, levaram o Brasil a ser alçado à condição de reino unido
a Portugal e Algarves. Essa situação, que prenunciava a independência do
território americano, constituiu mais uma motivação para se exigir o retorno de
D. João VI, expulsos os invasores franceses desde 1810. A perda da colônia
comprometeria ainda mais as finanças públicas e as bases comerciais frágeis de
um país que assumia, desde meados do século XVI, lugar periférico no cenário
político-econômico europeu.
Ameaçado
com a destituição da coroa portuguesa e pressentindo um Brasil independente, o
príncipe regente retorna a Portugal, deixando seu filho mais velho, D. Pedro, para garantir a continuidade dos Braganças no
governo brasileiro.A família
real chega ao país em 1821, quando havia eclodido no ano anterior um movimento
revolucionário, chefiado por Manuel Fernandes Tomás, de diretrizes liberais e
constitucionalistas. A revolução, concentrada em seu início em agosto no Porto,
mas já em setembro disseminada em Lisboa, elegera um Soberano Congresso
Constituinte e seus participantes redigiram os princípios legislativos de uma
constituição, que entraria em vigor em 1822. Nesse ano, o país perdia,
definitiva e oficialmente, sua colônia nas Américas.
António Sérgio observa sobre a relação entre ambos os fatos coevos:
A independência do Brasil, proclamada por
D. Pedro, foi o acto profundamente revolucionário. O caso agora era gravíssimo,
porque destruía os alicerces da economia nacional. A Constituição de 1822 é uma
ingênua vestimenta, debaixo da qual a sociedade continua como até aí: não se
lhe tocara nas fontes vitais; agora, porém, ou voltava o Brasil a ser colónia,
alimentando a metrópole com as suas riquezas (o que não passava de uma
quimera), ou, se não voltasse, tinha--se de organizar a metrópole para a
sua auto-suficiência, e, para isso, de modificar profundamente as
condições jurídicas da produção.
Se D. João
VI, mesmo a contragosto, jura fidelidade à Carta de 22, D. Carlota Joaquina e o
infante D. Miguel recusam-se a fazê-lo. Ambos passam a buscar apoio entre o
clero e a nobreza, no intuito de revogar a Constituição. Em 1823 encabeçam o
golpe da Vilafrancada e em 1824 o da Abrilada, após o quê, D. João VI vê-se impelido
a exilar o filho rebelde como medida
pacificadora.
Falecido
D. João em 1826, sem este indicar sucessor à coroa, advém dilema de graves
conseqüências. Quem seria o novo rei: D. Pedro, imperador do Brasil havia
quatro anos, ou D. Miguel, exilado em Viena? Legitimistas, favoráveis ao
infante, asseveravam que a primogenitura não mais favorecia D. Pedro, uma vez
que ele traíra o reino ao proclamar a Independência Brasileira em 1822.
Liberais, favoráveis ao outro pretendente, temiam um reinado de D. Miguel, defensor
do absolutismo monárquico e do clericalismo, contra os quais os revolucionários
de 1820 (denominados vintistas) tanto vinham lutando. O Conselho de Regência,
também na esperança de reaver a ex-colônia americana, decide-se por indicar D.
Pedro. O imperador do Brasil, todavia, abdica à sucessão em favor de sua filha,
D. Maria da Glória. Sendo ela muito jovem ainda para tornar-se rainha, seu pai
procura solucionar o problema fazendo-a casar-se com D. Miguel, o qual
assumiria a regência até a maturidade da esposa. Além disso, D. Pedro envia a
Portugal uma nova constituição, cujas bases conservadoras comprometiam as
reformas políticas conquistadas pelos vintistas. D. Miguel tanto jura fidelidade à Carta redigida pelo irmão
quanto desposa a sobrinha. No entanto, a anuência converte-se logo em novo
golpe. O infante, “sujeito a pressões constantes, oriundas de todos os grupos
sociais e, principalmente, dos seus conselheiros mais chegados”, proclama-se em 1828 rei absoluto.
Mais um passo retrogradava assim a estrutura sociopolítica portuguesa. E uma violenta guerra
civil entre 1828 e 1834 travar-se-ia:
de um lado, miguelistas, grande parte da população do país; de outro, liberais,
perseguidos pelo governo, muitos exilados, mas enfim reunidos e organizados por D. Pedro, que abdicara em 1831 ao trono brasileiro e
requeria o trono português.
O embate
entre os dois irmãos e seus respectivos partidários ganha dimensão simbólica na
leitura de autores como José-Augusto França. Este vê na Guerra Civil o choque
do novo Portugal, representado pelas idéias liberais, com o velho Portugal,
representado pelo conservadorismo miguelista. Todavia, o choque não se restringe aos anos de
1828 a
1834, mas parece estar profundamente arraigado no percurso do país pelo século XIX. Se D. Pedro vence D.
Miguel, e torna-se o rei D. Pedro IV de Portugal, a morte – que o abraçaria dentro de apenas quatro meses
após a vitória – poderia simbolizar a efetividade de um empate entre as forças
renovadoras e conservadoras. Embora 1820, nas palavras de José-Augusto França,
tenha sido “a condição sine qua non da definição do novo século” português, o país em termos econômicos e
sociais pouco havia avançado. Numa estrutura ainda eminentemente agrária
durante os oitocentos, a concentração da posse de terras nas mãos de quem ou as
cultivava com ineficácia ou as mantinha improdutivas constituía resistente
entrave ao desenvolvimento capitalista. Políticos como Mouzinho da Silveira e
posteriormente Joaquim António de Aguiar
dedicaram-se a solucionar os problemas com razoáveis resultados, seja por meio de reforma
tributária no que tangia a privilégios tradicionalmente concedidos à nobreza e
ao clero, seja por meio do confisco de terras pertencentes a essas classes e
seu leiloamento. Tais transformações, no entanto, não poderiam surtir o efeito
esperado, na medida em que a mentalidade portuguesa afinava-se pouco com uma
visão empresarial, tipicamente capitalista. Segundo Amadeu Carvalho Homem, “A
nova burguesia liberal” – classe que as reformas buscavam beneficiar – ainda aspirava à nobilitação, mantinha um ideal de riqueza
predominantemente centrado nos bens fundiários, especulava improdutivamente,
amarrava-se o melhor que podia aos nichos da administração pública e conservava
sob suspeita o valor da iniciativa individual, já então decididamente vitoriosa
nas paragens européias mais desenvolvidas. O que o liberalismo significou, no
exterior, de libertação de forças produtivas, cristalizou, em Portugal, no modesto cadinho de uma simples
transferência de título de propriedade.
Mesmo a
denominada Regeneração, que Rodrigo da Fonseca, João Carlos de Saldanha e
Fontes Pereira de Melo fizeram executar a partir de 1851, ateve-se a atingir a
superfície infra-estrutural, na promoção de obras públicas, como a construção
de estradas, ferrovias, cabos telegráficos – ademais, financiadas por vultosas
dívidas internas e externas. Desse modo, o atraso econômico de Portugal
mantinha-se e ia-se mantendo para além do
século XIX:
a economia portuguesa cresceria de forma
sustentada, mas a um ritmo que ficou bastante aquém da expansão
internacional que entretanto ocorria e o fosso, que já existia, foi-se cavando
cada vez mais fundo. Os portugueses acabariam por ficar certamente mais ricos –
ao longo destas décadas, o acréscimo no seu rendimento real cifrou-se entre os
40% e os 65% – mas, como se figura, a sua posição relativa tinha decaído
acentuadamente. Em 1913, o produto nacional per capita era cerca de 30% da média
de um conjunto de 19 países que à época se poderiam considerar avançados.
A nação portuguesa, em termos
modernos, constrói-se justamente em consonância com uma aguda consciência desse
lugar periférico, em contraste com os anteriores sucessos históricos, como
exemplificavam a heróica fundação do Estado português em confronto com Castela,
as expansões e descobertas ultramarinas. O atraso econômico de Portugal
constitui questão bastante complexa. Segundo Jaime Reis, debate-se o tema desde
pelo menos o século XVI. Ao observar bibliografia da década de 1970 para cá
sobre o assunto, esse autor pontua as causas mais assinaladas pelos estudiosos
para o atraso: má distribuição das terras, junto à pobreza de recursos
naturais; baixo conhecimento técnico e elevado índice de analfabetismo entre a
população, o que impedia obter-se resultados mais eficientes na agricultura,
base da economia portuguesa; restrição do mercado consumidor interno e
concorrência no mercado consumidor externo.
Essas condições, entre outras, levaram Portugal a situar--se na retaguarda
do avanço econômico empreendido pelas potências ocidentais; atraso tão sentido
e ressentido no século XIX, quando a idéia de decadência nacional se instala de
maneira recorrente nas discussões sobre o país.
Na seção 1.1, referi-me ao fato
de que, nas palavras de Luiz Costa Lima, “o louvor da História tivera como
forçoso acompanhamento a crença otimista no avanço da humanidade”. Quando o
discurso histórico, sob a suposta égide da verdade, evoca a si foros científicos,
propondo o decorrer da História como um jogo linear de causas e conseqüências,
esse paradigma impõe a idéia de progresso. Cabe acrescentar que a própria idéia
de progresso traz consigo a inerente faceta antitética da decadência. Joel
Serrão esclarece:
[...] o conceito de progresso (e,
portanto, também o de decadência), quando referido ao plano temporal em que se processa
a evolução histórica, só apresenta visos de utilização inteligível se for
conexionado com a atividade da ciência e com as consequências técnicas desta
decorrentes [...].
Importa
observar que o entrelace ideológico do progresso, da ciência de que o discurso
nacionalista se constituía em meados do século XIX, resultou num entendimento da nação, nas palavras de Hobsbawm,
não apenas como nacional mas também como
‘progressista’, isto é, capaz de desenvolver uma economia, tecnologia,
organização de Estado e força militar viáveis, ou seja, como algo que precisava
ser pelo menos territorialmente grande. Acabava sendo, na realidade, a unidade
‘natural’ do desenvolvimento da sociedade burguesa, moderna, liberal e
progressista.
Ao cotejar
os fins do século XVIII (quando haviam ocorrido a Independência Norte-Americana
e a Revolução Francesa) e os cem anos depois (quando se comemorou o centenário
desses eventos), Eric J. Hobsbawm discute o fosso abissal cavado ao longo desse período entre países pobres e ricos, juntamente a uma
mudança paradigmática:
No século XVIII, os europeus podem ter
achado o Celeste Império [da China] um lugar realmente muito
estranho, mas nenhum observador inteligente o teria considerado, em qualquer
sentido, uma economia ou civilização inferiores à européia, e menos ainda um
país “atrasado”. Mas, no século XIX a defasagem entre os países ocidentais, base
da revolução econômica que estava transformando o mundo, e os demais se
ampliou, primeiro devagar, depois cada vez mais rápido.
Segundo
Hobsbawm, o alto desenvolvimento tecnológico – tanto de aplicação industrial
quanto de aplicação bélica – levou alguns países à necessidade e também à
possibilidade (o autor diz ‘facilidade’) de subjugar econômica e militarmente
outros países que não acompanhavam tal desenvolvimento. Exemplifica essa situação o Ultimatum
inglês de 1890, que exigiu aos portugueses a retirada do território entre
Angola e Moçambique. Dado o poderio armamentista da Inglaterra, anuiu-se à exigência sem qualquer efetiva oposição.
Numa busca
mais refinada de localizar a pobreza e a riqueza do mundo no século XIX, o
historiador utiliza justamente Portugal para ilustrar que, mesmo na Europa –
bloco mais desenvolvido –, havia países mais adequadamente classificáveis
àquela época como pobres. Eis sua descrição de Portugal: “[...] era pequeno,
débil e atrasado segundo qualquer padrão da época, praticamente uma semicolônia
britânica; e apenas o olhar da fé poderia discernir ali indícios significativos
de desenvolvimento econômico”.
O atraso
econômico de Portugal, verificado no cotejo com especialmente Inglaterra,
França e Alemanha, revelava-se também no declínio do vasto império português
desde os quinhentos. Esse atraso – frente ao ideal de progresso – resultou na
angustiante percepção de decadência de Portugal manifesta por intelectuais
(escritores, historiadores, políticos) do
século XIX. Entre os fatos mais destacáveis e cronologicamente mais próximos que teriam fomentado essa
percepção no imaginário português, Joel Serrão cita “a influência decisiva da
independência do Brasil (1808-22) e do ultimato inglês (1890) em momentos
fundamentais da história do século passado [o XIX]
– a experiência liberal vintista e a primeira revolução republicana”.
Referentemente
à questão da decadência em Portugal, devemos ainda frisar que esta se divide em
“duas questões diversas, embora conexas”: “1) a da regressão económica, técnica
e científica que se teria seguido ao início do colapso do império luso-oriental
(a partir dos meados do século XVI); 2) a da ideologia decadentista que na
consciência desse facto lançaria as raízes”. Neste trabalho não me interessará
discutir o primeiro ponto, mas, sim, na medida em que se diferenciam, quase
exclusivamente o segundo.
Perceber,
compreender e buscar solucionar essa decadência integrará o projeto de
construção da nação moderna portuguesa. E as mais célebres gerações de
escritores pertencentes ao século XIX (a de Garrett e Herculano e a Geração de
70 são as mais significativas
nesse aspecto) exemplificam como a literatura e a história tiveram o propósito e o poder de traçarem e
executarem esse projeto que modificava as relações sociais, políticas, econômicas e culturais em todo o mundo.
Fonte:
Adriano Lima Drumond: “A imagem da nação
portuguesa em a Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco”. (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós- -Graduação em Estudos Literários da Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Teoria da Literatura. Área de Concentração:
Teoria da LiteraturaLinha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius de Freitas). Belo Horizonte, 2007.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br
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