13/08/2014

Histórias rústicas (Contos), de Virgílio dos Reis Várzea

 Histórias rústicas, de Virgílio Várzea pdf gratis
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Virgílios 

 Observei que não existe coisa no mundo que não
seja ornada de sonhos, tomada por signo, 
explicada por algum milagre, e isso tanto mais 
quanto a preocupação pelas origens, pelas 
primeiras circunstâncias é mais ingenuamente 
forte. E é por isso, sem dúvida, que uma sentença 
foi pronunciada por um filósofo cujo nome não sei 
mais: NO PRINCÍPIO ERA A FÁBULA.
Paul Valéry, in: A alma e a dança

Este capítulo apresenta uma cartografia, a partir da qual o nome do escritor Virgílio Várzea foi visibilizado pela historiografia literária. Encarando o exame de sua fortuna crítica pelos registros que permitem dizer-ver sua obra, a principal base documental é constituída por fontes que, tanto em termos espaciais mais amplos, consideram as análises conforme uma perspectiva nacional, como as que, em termos mais restritos, abrangem um circuito reconhecido pelos limites estaduais. Em perspectiva temporal, em sua maioria, estes mesmos registros fundamentam-se na ordenação sucessiva e irrepetível de acontecimentos, através de séries que, evitando as instabilidades e desvios, buscam a homogeneidade dos padrões literários pelos encaixes e generalizações de conjunto. 

A despeito de certas diferenças e discordâncias que guardam entre si, persiste no conjunto desses saberes taxionômicos uma preocupação com os cânones literários, problemática que reatualiza a questão da sobrevivência póstuma afirmada pela fama e alimentada pelo iniciado-especialista. Absolutizando grandezas em termos de cânone-epígone, tais saberes procuram pelas galerias da memória escrita, os nomes e obras eleitas, definindo-se na instância da síntese e do âmbito pedagógico. Tratando de avaliar a procedência e especificar a natureza de uma boa e necessária obra de arte, esforçam-se para resgatar o sentido autêntico da obra, inscrevendo suas atribuições e especificidades nas molduras da literatura moderna e nos limites da nação. Tal perspectiva acaba por redefinir os limites do pensável, delineando um campo conceitual composto por regras e classificações capazes de tornar possível certas distâncias e aproximações entre as obras consideradas.

Avistado como ponto no universo desta cartografia, um e muitos, o nome Virgílio Várzea remete a uma tessitura bem mais ampla, cujo lastro está dado pela definição de fronteiras territoriais, pela legitimidade de uma língua comum e pelos pressupostos de uma mesma identidade cultural, ainda que sublinhada por certas variedades. Nestes estudos ganham relevo os vínculos entre literatura e nacionalidade, revestidos de condição de inventário, tratando-se de refletir sobre a constituição de uma herança e dispositivo, ao mesmo tempo afirmador-criador e confirmador-ratificador de séries por onde comparecem nomes e atribuições. Destacado por uma ordem classificatória e servindo a propósito por vezes distintos, tal mecanismo, por um lado, espacializa as obras e autores de pouco ou reduzido interesse, cuja menção se deve ao caráter isolado, pitoresco ou distanciado em relação aos nomes considerados ilustres ou de grandeza expoente; e por outro, ressalta os filhos talentosos e diletos, quer em proposição com ênfase mais cientificista ou mais laudatória, onde os irreconhecimentos e insignificâncias parecem compensados, ora na perspectiva do local para o nacional, ora do nacional para o europeu.

A propósito da percepção ou compreensão implícita acerca de uma inserção literária que ocorre pelas fímbrias acanhadas da colonia-província em relação à metrópole-Europa, não deixa de ser tentador lembrar o paradoxo indicado por certo comentarista, depois de enumerar a obra visível de Pierre Menard. É que em sua obra subterrânea e inconclusa, ficara guardado o assombroso propósito de escrever Quixote, não pela cópia, mas pela coincidência com as palavras de Cervantes. Porém, reconhecendo que não há exercício intelectual que não resulte ao fim inútil, depois de muita fadiga e vigília, o empreendimento teve suas milhares de páginas manuscritas e rascunhos destruídos. Os sucessores que quisessem ler aquela espécie de palimpsesto, a fim de poder exumar sua própria barbárie, teriam que ressuscitá-lo constantemente, entesourando antigos e alheios pensamentos. Só assim, recorrendo ao anacronismo deliberado e às atribuições errôneas, Odisséia poderia ser lida como se fosse posterior a Eneida, na condição de destino irreal e leitura infinita, técnica inventada por Menard, talvez sem querer, mas graças a sua ambição.27 Desse modo, em posição deslocada e inatual, o crítico-intelectual é obrigado a relembrar a tradição, buscando infinitamente a identidade extraviada de sua cultura, ainda que correndo o risco de naufragar em pressas e simplificações. 

Neste leque que se abre, ignorando a área sombria, uma zona de luz inside sobre o que se considera recuperar, resgatar, iluminar, visibilizar. Em grande parte, prevalece através dos conjuntos constituídos e no que poderíamos chamar de taxionomias literárias, a impossibilidade de compreender-explicar os efeitos de acontecimento que se constroem na dimensão intrínsica do texto e se constituem como recurso e recorrência capazes de produzir e alimentar não apenas a própria lógica e funcionamento textual, como também sua reprodução. Esforço semelhante ao de compilar um dicionário, sem deslocar ou ultrapassar as molduras do instituído, predomina a aceitação das classificações herdadas, sendo seus portadores reconhecidos como porta-vozes capazes de autenticar e transmitir grandezas, os gêneros e os conceitos, além de assegurar a originalidade das tradições e estéticas. Do mesmo modo, colocando o problema da herança e da transmissão do patrimônio literário sem questionar o solo onde medraram as regras classificatórias, nem estranhar os critérios através dos quais as mesmas definiram lugares, permanece a ausência de problematização sobre os princípios que sustentam as seqüências e agrupamentos, bem como a seleção de autores, obras e nexos, capazes de familiarizá-los. 

Operando por dualidades como forma conteúdo, dimensão-proporção, centro-periferia, universal-particular, cópia-original, cultural-natural, interior-exterior e assim por diante, os procedimentos classificatórios não cessam de enviar ao caráter arbitrário, em cujas bases se assentam as dimensões e proporções que caracterizam tanto escolas e movimentos, como escritores e obras, remetendo às instâncias do implícito e do aleatório. Através de tais inclusões-exclusões taxionômicas, podem ser lidas não apenas as contradições como também as fronteiras porosas e conflitantes de uma história sobre as compreensões e percepções acerca do dizer literário e das diferentes maneiras de inseri-lo ou combiná-lo, apagá-lo ou realçá-lo. No terreno destas heterogeneidades, o que aparece pode ser lido como um regime de verdades, cujo empreendimento para pensar lugares, dizer hierarquias e ver agrupamentos e trajetórias se constitui num problema que reclama maior atenção. 

Indicando certos rasgos como riscos ou fendas que atravessam cada ordenação taxionomica destinada a derrotar o silencio e as diferenças através de agrupamentos padronizados por estéticas e estilos ou conjunto de vidas e obras artísticas, destacam-se algumas incisões. São elas: origem como artifício, classificação como heteróclito, gênero como dispositivo e texto como disseminação. Para melhor perceber o horizonte desta reflexão, o nome de Virgílio Várzea será reconhecido em nuances distintas, mas em boa parte complementares: como sombra de Cruz e Sousa e talento pouco desenvolvido; como presença-ausência numa temporalidade e meio em que atravessa despercebido; como um paisagista-marinheirista de pálidas colorações e como expoente injustamente esquecido que deve ser reinserido. Assim, identificado por críticos de diferentes procedências teóricas e políticas, nos registros dos comentadores-conhecedores de sua obra prevalece um movimento pendular que vai do pálido ao brilhante colorista, do paisagista náutico com pendores universalistas ao paisagista regional que jamais esqueceu suas gentes, do escritor pouco talentoso ao muito original, do autor que não merece maior atenção ao que não foi suficientemente estudado. 


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Fonte:

Rosângela Miranda Cherem: “Aparições da textualidade: dizer e ver um Virgílio”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, para obtenção do Grau de Doutora em Literatura, sob a orientação do Prof. Dr. Raul Antelo. Universidade Federal de Santa Catarina). Florianópolis, 2006.

Notas
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade.

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