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Divina Comédia: a
estrutura de uma cosmologia poética do Paraíso
Uma característica importante que norteia a poética medieval
é a conexão entre o ser humano e o Universo, especialmente se fundamentando no
simbolismo numérico como princípio da criação divina do Cosmos, fundindo
cosmologia e cosmogonia. A Idade Média recebeu da Antiguidade Clássica e do
Cristianismo o gosto pelo simbolismo místico dos números, de modo que essa
recepção aritmético-simbólica contribuiu fortemente para a criação do que
Curtius chama de “composição num rica” (1979, p. 511), vindo a influenciar,
notoriamente, a criação poética medieval. Essa compreensão decorre de um
pressuposto: “o plano de Deus [na criação] era aritmético! Não devia o
escritor, pelo seu esquema, deixar-se também guiar pelos n meros?” (CURTIUS,
1979, p. 543). Assim, o Gênesis judaico era visto pelo homem medieval como uma
estrutura aritmética empregada na formação e na criação do Cosmos. Não só os
cristãos medievais, especialmente os que tinham conhecimento da literatura greco-latina,
como é de se esperar em termos óbvios, mas também os judeus medievais conheciam
bem esse modo de compreender o plano criacional de Deus para o Universo. A
tradição judaica ensina, além do Livro da Sabedoria, no tratado talmúdico Pirkê
Avôt ( tica dos Pais) V:1, que “através de dez pronunciamentos (Divinos) foi
criado o mundo” (apud BUNIM, 2001, p. 306), pronunciamentos encontrados nos
capítulos um e dois do Gênesis. Assim, conforme Irving Bunim, “a Criação vai do
simples para o complexo, da matéria bruta para a inteligência crescente. O
homem veio por último, como ápice da criação, a coroação de tudo o que veio
antes dele” (2001, p. 307). Ou seja, a criação se deu aritmeticamente num
processo que foi do macro-cosmo (o Universo) para o micro-cosmo (o ser humano),
marcado pelo número 10.
Outro texto judaico, embora apócrifo, serviu de mote para o
vínculo entre simbolismo aritmético e composição numérica, na Idade M dia: “dispuseste
tudo em medida, n mero e peso”, conforme o livro da Sabedoria de Salomão 11:21,
texto possivelmente originário do primeiro século antes de Cristo. Por essa
razão, como dizargutamente Ernst Curtius:
O conceito de ordo [ordem] da mentalidade medieval se
desenvolveu desse único versículo da Bíblia [Católica], que santificou o número
como elemento formador da obra divina da criação, e lhe conferiu dignidade metafísica.
Essa é a grandiosa causa da composição numérica na
literatura (1979, p. 543).
Agio de Corvey, em um poema computístico, ensinou que conquanto
as artes procedam de Deus e sejam benéficas, a aritmética é maior que todas as
artes, “porque a obra da criação, o ritmo do tempo, o calendário e as estrelas
são fundadas no n mero” (CURTIUS, 1979, p. 542). Tendo esse ensinamento de Agio
em mente, chegamos à classificação da natureza dos números, corrente no
medievo: os números redondos, como 50, 100, 200, entre outros, considerando
todos os números que são passíveis de ser divididos por 5 ou 10. Eles podem ter
tanto valor simbólico quanto denotação estética. Já os números simbólicos, como
3, 7, 9, entre outros, apresentam significado teológico ou filosófico. Além de ressaltar
essa classificação dos números, Curtius diz que “tanto o número de versos como
o das estrofes numa poesia, e também o de capítulos de um livro, ou o de livros
numa obra, pode ser determinado pelo simbolismo num rico”, culminando com um
jogo literário num rico junto com o simbolismo dos números (CURTIUS, 1979, p.
543-544). Um exemplo da determinação do simbolismo numérico em um texto é a
carta de Dante a Can Grande, a qual tem 33 parágrafos, em alusão à idade com
que Cristo morrera, além do Decameron, de Boccaccio, lidando com os
números 10 e 100, por exemplo.
Dante Alighieri, com sua “maravilhosa harmonia da composição
numeral”, é – conforme atesta Curtius – “o fecho e auge de uma longa evolução”,
de modo que, e aqui revemos contextualmente a citação de Curtius que é epígrafe
de Avalovara:
Desde as enéadas da Vita Nouva,
marcha Dante para a artística construção numeral da Divina Comédia: 1 +
33 + 33 + 33 = 100 cantos conduzem o leitor através de três reinos, o último
dos quais abrange 10 céus. Tríadas e décadas se entretecem na unidade. O número, aqui, não é mais simples esqueleto exterior, mas símbolo do ordo cósmico (1979, p. 549. Grifo nosso).
Dante seguiu, e
experimentou, o princípio herdado pelo medievo, de modo que criou uma obra
inovadora para seu tempo, transcendendo o esgotamento das formas épicas clássicas.
O simbolismo numérico, com sua mística, serviu de base na composição da opera
prima de Dante, para mostrar que o ser humano está integrado ao cosmos, cujo
exemplo dado pelo vate é a ligação dos espíritos justos com os céus-planetas do
Paradiso, nos quais residem recompensados de acordo com a conduta terrena.
Seguindo a numerologia e seu simbolismo místico, Dante
enfatizou, na composição de sua obra-prima poética, o 3, o 10 e seus
respectivos múltiplos, sobressaindo o três. Assim, o gigantesco poema dantesco
foi criado com 14.233 versos decassílabos, dividido nas três partes/lugares
supracitados, de modo que cada uma delas se chama cantiche, cantos, e se
dividem em 33 canti, que podem
ser considerados capítulos, segundo Hernâni Donato (In: ALIGHIERI, 1981, p.
XIV). A centena de cantos que totalizam a configuração cosmo-poética da Commedia
pode ser lida como uma poética de retorno cosmológico ascensional ao Paraíso,
devido à simbologia do 10. Paralelamente, há a terza rima, algo inovador
criado por Dante, cujo esquema simétrico de rimas (ABA BCB CDC, e assim
sucessivamente, até VZV Z, como que ad infinitum), é que “simula uma
permanente ascensão do in cio ao fim da obra” (STERZI, 2008, p. 105).
Precisa é a interpretação que Ernst Curtius dá para as rimas
dantescas: “encadeamento contínuo com a inevitável energia. [...] A perfeita cobertura
e interpenetração do interior dantesco e do exterior cósmico; congruência da alma
e do mundo” (1979, p. 396). Portanto, as rimas de Dante, ásperas no Inferno,
atenuantes no Purgatório, ascendem ao efeito da luz, fundindo teologia,
metafísica, cosmologia, história humana e psicologia, no Paraíso (Cf. LEAL,
1986, p. 41), uma cosmogonia poética da alma, que renovaram profundamente o
gênero poético de seu tempo.
É também em nome do Paraíso que Dante faz um deslocamento do
sentido conceitual da comédia. Geralmente, a comédia é vista como gênero
dramático que mostra pessoas inferiores, oposta à tragédia (que eleva seres
superiores), não sendo aquela tão estimada quanto esta. Entretanto, Dante, para
explicar a razão de haver dado o título de Comédia para sua obra poética,
desloca o sentido dramático em nome da recolocação do conceito a priori “de
que a tragédia come a em felicidade e termina em infortúnio, enquanto,
inversamente, a comédia começa em infortúnio e termina em felicidade”, como
lembra Eduardo Sterzi (2008, p. 105). Esse entendimento visto no percurso
dantesco pela obra: do infortúnio trevoso do inferno, passando pela esperança de
felicidade vista no Purgatório, para a felicidade beatífica do Paraíso.
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Fonte:
Fernando Oliveira Santana Júnior: “Visões do paraíso: releitura da Divina Comédia, de Dante
Alighieri, em Avalovara, de Osman Lins”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras e Linguística da UFPE, com linha de pesquisa em Literatura Comparada, como requisito à
obtenção do grau de Mestre em Teoria da Literatura. Orientadora:
Profª Drª Ermelinda Maria Araújo Ferreira). Recife, 2011.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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