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A figura feminina em Hóspede: da frustração à sedução
Conforme já comentado, o
romancista Pardal Mallet produz a sua obra nas últimas décadas do século XIX,
com uma narrativa nem sempre em sintonia com outras produções coetâneas
naturalistas. Publicado em 1887, Hóspede é o romance de estreia do escritor e jornalista
sul-riograndense e propõe um enredo a partir de um jogo de sedução que se estabelece
entre D. Nenê e o seu hóspede, Marcondes, amigo de Pedro Soares, recém-chegado do
Recife.
Quando atentamos ao modo como o
narrador descreve a casa e a protagonista da obra, entendemos que, apesar de
ter tudo que supostamente poderia subsidiar a presença feminina naquela
sociedade paternalista, D. Nenê não era feliz ou realizada, falta-lhe algo que nem
ela própria saberia identificar o que é, e que os leitores descobrirão aos
poucos, conforme fica claro já nas primeiras linhas da obra:
Como no relógio da parede soassem
4 horas, Nenê, num movimento de desânimo, deixou escorregar-lhe pelo corpo
abaixo o jornal que estava a ler distraidamente. Algum pensamento triste
acabrunhava-a. Tanto que por sob as madeixas sedosas da franja adivinham-se
umas rugazinhas pequeninas a franzir-lhe a testa, aproximando-lhe os sobrolhos
levemente arqueados. Veio-lhe um gesto grande de inquietação e com o pezinho
delicado batia febrilmente no assoalho. Depois o braço torneado e alvadio, nas curvaturas
graciosas fortemente desenhado pela manga estreita do casaco, apoiou-se ao encosto
da cadeira de balanço para suster mais comodamente a cabeça gentil dos traços finos
numa pureza ideal de Juno. (MALLET, 2008, p. 3. Grifos nossos).
Depreende-se que D. Nenê, além de
ser apresentada ao leitor por seu desânimo, é também descrita e idealizada por
sua natureza de ‘traços finos numa pureza ideal de Juno’, ou seja, quase uma
personagem romântica de tão idealizada pelo narrador, no entanto, envolta na própria
frustração devido à repetição rotineira de seus atos. Assim, encarna um ideal
pensado de feminino.
A referida personagem representa,
a priori, o lugar ocupado pelo feminino no século dezenove que requeria uma
mulher submissa, representação máxima da base familiar, a sustentação moral da
casa, incumbida da educação dos filhos. Norma Telles sugere que no citado
período, o papel da mulher é redefinido, e conjeturas acerca do caráter dessa
mulher são propostas da seguinte forma:
O discurso sobre a ‘natureza
feminina’, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade
burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força
do bem, mas, quando ‘usurpadora’ de atividades que não lhe eram culturalmente
atribuídas, como potência do mal. (TELLES, 2000, p. 401. Grifos da autora)
De acordo com o salientado por
Telles, a figura do feminino estava engendrada em duas proposições: ou era
reprodutora de um “discurso do bem” ou de um “discurso do mal”, assim, ou se
enquadrava no modelo idealizado de mulher definido pelos espaços sociais do período
ou rompia com esse ideal, indo em direção a atribuições que não lhe eram
devidas. D. Nenê segue esse padrão, classificaríamo-la, portanto, como ‘força
do bem’.
O que cabia, portanto, à mulher
era reproduzir um protótipo idealizado por homens, uma vez que lhe era negada a
autonomia para ela própria redesenhar sua posição naquele cenário, assim,
cabia-lhe a encenação de um modelo de que não era produtora, ou ainda, “a encarnação
(...) de uma vida sem história própria” (TELLES, 2000, p. 401.), uma vida pensada
por homens.
Para corresponder ao imaginário
proposto, a mulher se via envolvida em uma atmosfera restrita ao lar e às
obrigações que esse espaço lhe requeria. Ingrid Stein sentencia que, no século
XIX, a mulher que pretendesse ser bem aceita socialmente deveria limitar-se à
posição dentro de família, à educação, às regulamentações legais que lhe diziam
respeito ou à sua sexualidade – verifica-se a sua nítida discriminação em
relação ao sexo
masculino, condição
correspondente à visão. Na ideologia da época, da mulher como um ser
naturalmente inferior, e, portanto, assim justificada. (STEIN, 1984. p. 53).
Reiterando esse perfil traçado
por Stein, concluímos que à mulher restava exercer papéis condizentes com esse
ideal. Aceitá-los implicaria sustentar uma figura de que ela não era
propositora, ou seja, ser mulher, socialmente aceita, significaria vestir um
ideal já sacramentado de feminino. E a protagonista desdenhada pelo narrador de
Pardal Mallet veste esse ideal, inclusive com sua sexualidade apagada até a
chegada de Marcondes, quando a personagem começa a se questionar se fizera uma
boa escolha casando-se com o marido ou, ainda insinuando-se sexualmente para
Marcondes, com quem mantém um jogo de sedução, amor e ódio.
Quando chega à casa do casal,
Marcondes causa certa repulsa naquela mulher, e aqui questionamos até que ponto
não se trata de encantamento reprimido, pois Nenê era uma
senhora cumpridora de suas
obrigações familiares pertinentes ao seu sexo naquele contexto.
Aos poucos, estando o marido
ausente para trabalhar, D. Nenê começa a encontrar afinidades com aquele homem,
as quais não tinha com seu esposo. O trecho a seguir, apesar de extenso, é
preciso em determinar tais afinidades.
Foi a sala de visitas o ponto escolhido para a
reunião. Além de ser ela muito clara e confortável, era aí que se achava o
piano e Nenê poderia distraí-los executando diversos trechos clássicos de que
gostava muito. E, como Marcondes aproveitasse o ensejo para fazer um paralelo
entre a música alemã e a italiana, que lhe agradava muito mais, a moça engajou
uma nova discussão, apreciadora como era de Beethoven e Mozart. Cada qual
forcejava em produzir argumentos em seu favor, cantarolando trechos; os dois sozinhos,
junto ao piano, [...] Pedro não entendia nada de música e nas suas horas de pilhérias
chegava mesmo a dizer que o piano fazia um barulho infernal a incomodar-lhe os
ouvidos. Mas nesse momento ele estava com boas disposições, tanto que quis intrometer-se
na conversa e concluiu no meio de gargalhadas que a música mais harmoniosa era
a dos sinos de igreja quando dobravam por causa de algum defunto. Nenê não gostava, porém, dessas caçoadas. Quem
não entendia do negócio devia conservar-se calado! E o Pedro fez-se muito sério.
[...] Ao menos para não ficar calado quis dirigir a conversa para outro terreno
e lembrou ao amigo as aulas do Matias. Como a moça desejasse explicações sobre
as risadas com que foi acolhido este nome, entraram em detalhes. O Matias era o
professor de música lá do Externato de Pedro II. Um bom homem, coitado, mas
muito tolo e que se deixava ridicularizar pelos rapazes! [...] Enfim, como não
se fizesse exame da cadeira, só aprendia quem tinha vontade! E o Pedro disse então
à mulher que o Marcondes era exatamente um daqueles que, no tempo, mais vocação
havia mostrado.
O rapaz desculpava-se, fazia-se
de modesto. Era verdade que tinha algum gosto para a coisa e que chegara mesmo
a aprender um bocadinho de flauta! Mas não passava de um
curioso! Nenê queria porém
ouvi-lo e, como ele dissesse que trouxera uma, pediram-lhe
muito para que a fosse buscar.
Exatamente ela tinha uma música com acompanhamento e lhe a partitura, que os
dois examinaram enquanto o Pedro insistia e dizia ao amigo que
não se fizesse de tolo e se
deixasse de cerimônias. E tais foram os rogos e os pedidos que lhe dirigiram
que o Marcondes viu-se obrigado a fazer-lhes a vontade. Começaram então que lhe
parecia muito fácil Rápida em seus desejos, revolveu logo a estante e mostrou lhe
a partitura, que os dois examinaram enquanto o Pedro insistia e dizia ao amigo
que não se fizesse de tolo e se deixasse de cerimônias. E tais foram os rogos e
os pedidos que lhe dirigiram que o Marcondes viu-se obrigado a fazer-lhes a
vontade. Começaram então de parte a parte os ensaios, cada qual trabalhando por
acertar o compasso, e no fim de alguns instantes tiraram completamente a música
e deram princípio à execução. O Pedro aplaudiu-os vivamente com grandes e
estrepitosas palmas. (MALLET, 2008, pp. 19-20. Grifos nossos)
Essa cena em que Nenê entrevê no
amigo do marido características que este não tinha e que ela apreciava, são
construídas pelo narrador a fim de se perceber que Pedro começa a ficar
deslocado dentro de sua própria casa, esforçando-se para não ficar alheio às conversas
da reunião, assim como para demonstrar que Nenê ressente-se de ter um marido não
apreciador de música como ela, paralelo esse que se dará com Marcondes, devido
ao elogio pronunciado por Pedro.
A partir desse momento,
reconhecendo semelhanças entre a sua personalidade e a de Marcondes, ela começa
a vislumbrar naquele homem o par ideal, e passa a ser descrita elo narrador
segundo a sua felicidade, opostamente ao modo desanimado com que foi
introduzida na narrativa.
Nenê, essa nadava em
contentamentos. Havia tanto tempo que ela sonhava encontrar alguém que a
acompanhasse ao piano, com quem pudesse conversar sobre música, que a
compreendesse enfim! E
instintivamente estabelecia um paralelo entre o marido e o Marcondes. Se ela
fosse casada com alguém nessas condições como havia de ser feliz! (MALLET,
2008, p. 19.)
Assim, entre os dois
estabelece-se uma comunicação que não há entre Nenê e seu esposo, devido ao
gosto de ambos por música clássica. Desse gosto compartilhado, nasce uma atração
e um jogo de sedução mútua, conforme exposto nos excertos a seguir:
De tudo isto ia se formando entre
os dois uma grande intimidade. Nenê já abandonara completamente os modos
cerimoniosos de tratamento e às vezes chegava mesmo a servir-se se para com ele
desse tu que nivela os terrenos e suprime as distâncias. Depois da execução de
cada partitura, quando ainda vibravam-lhes aos ouvidos os acordes sentimentais
e tristonhos de Chopin, a moça fitava-o nuns olhos quentes de delírio, como a
lhe agradecer aqueles instantes de ventura que lhe tinha proporcionado.
(MALLET, 2008, p. 76).
A sedução construída por meio do
gosto musical que ambos partilham não chega a efetivar-se sexualmente, no
entanto, passagens demonstram que tal desejo surge entre as
personagens, chegando ele a
desejar tocar seus seios e possuí-la sexualmente, conforme se vê em:
O busto encantador das curvaturas
graciosas e carnações sadias de Nenê aparecia-lhe animado com aquele sorriso de
desejos que a moça lhe dirigira havia pouco tempo quando lhe pedia que viesse
buscar a flauta para acompanhá-la. No final das contas só podia ser uma
conquista, cheia de honrarias para quem para quem a conseguisse, prometedora de
felicidades sem fim! E recordava todas aquelas palestras da vida acadêmica em
que os companheiros afirmavam não haver mulher que não tivesse sua hora de
fraquezas. Repugnava-lhe a forma genérica e absoluta da proposição. Mas por que
Nenê não seria dessas que caem?! (MALLET, 2008, pp. 68-9).
Em dado momento do romance,
quando Marcondes resolve sublimar seus desejos e extravasá-los com Linda,
empregada da casa, deixa claro que o faz também para provocar ciúmes em Nenê.
Atitude essa que explicita a sedução já construída entre ambos, pois chegam a
ter sentimentos de posse.
O rapaz fazia-se, porém,
distraído, raramente acertando o compasso, voltado para a Linda a quem parecia
fulminar com os seus olhares ternos a segredarem umas declarações de amor. E
como observasse que Nenê apercebia-se dos seus manejos e não prestava mais atenção
à música, continuou, procurando fazer-se mais notado, muito contente em ter posto
em prática o seu plano, prevendo desde já uma próxima cena de ciúmes veementes após
a qual a moça se lhe entregaria inteira e completamente, pedindo-lhe que não
fosse tão mau, que a amasse pelo menos um bocadinho! [...] Desde então, já nas
conversas da sala, já durante o chá, Nenê conservou-se muito irascível e cheia
de bruscarias. Forcejava em atrapalhar todos os colóquios do Marcondes com a
Linda; o rapaz, que notava estas súbitas transformações, fazia-se mais amável
para excitá-la e provocar-lhe a tão ansiosamente esperada cena de ciúmes
(MALLET, 2008, p. 96).
Conforme já afirmamos
anteriormente, o narrador de Hóspede quebra com um protótipo de narrativa
naturalista, ao fugir do que se tornou clichê entre os romances do período e
opta por não efetivar a traição que todas as cenas de envolvimentos entre Nenê
e Marcondes prenunciavam, de certa forma, frustrando o leitor acostumado com
uma narrativa em que tais elementos levassem a tal fim.
Assim sendo, o final da narrativa
propõe um retorno ao começa da história, uma vez que o hóspede do título sai
daquela casa, ou seja, o elemento estranho àquela sociedade é extirpado do
convívio comum, como uma doença que precisa sair de um corpo são, aproximando
um pouco a estrutura de Hóspede daquela experimentada em outros títulos
naturalistas que seguiram a
cartilha de Zola.
Assim como uma doença sarada,
Marcondes deixa marcas com as quais aquelas personagens, principalmente Nenê,
terão que conviver, como os rancores na esposa de seu amigo, que viu a sua
chance de ter um envolvimento extraconjugal falhar. Porém, esse retorno dá-se
em termos, Nenê já sabe o que lhe falta e experimenta outros sentimentos como
desejo, amor e ódio pela mesma pessoa que não o seu marido.
Agora a moça tinha-lhe uns ódios
e uns rancores veementes. [...] odiava-o por causa desse amor que ainda lhe
tinha, [...], por todas estas vezes em que estivera junto a ele a palpitar de
sensualidades, por não se ter ele aproveitado dessas ocasiões que ela inconscientemente
lhe oferecera tantas vezes! (MALLET, 2008, p. 103.)
De momento para momento
aumentava-lhe o ódio que dedicava ao Marcondes. Não podia mais aturá-lo e
ficava nervosa com só ouvir-lhe a voz. Ele a fizera sofrer tanto! E sem
formular bem claramente a acusação, sem mesmo compreendê-la inteiramente, exprobava-lhe
o ter ofendido a sua honradez e despertado a sua sensualidade, nem maculando a
primeira, nem satisfazendo a segunda. Ela perdoar-lhe-ia tudo, uma declaração
forte e veemente, uma audácia espantosa, o segurá-la de repente quando eles estavam
a sós e beijá-la, beijá-la por muito tempo, indefinidamente. Nunca, porém, o
que fizera o Marcondes – excitá-la, fazer-lhe passar pela nuca uns hálitos
quentes de arreitações para largá-la em seguida exausta e não satisfeita, a
pedir mais, a pedir tudo e sem conseguir coisa alguma – espécie de gota d’água
a aviventar a sede de quem a prova nos lábios ressequidos pela abstinência!
(MALLET, 2008, pp. 107-8).
Assim, consideramos que há um
jogo de sedução explicitado entre Marcondes e Nenê e tal jogo é patente como
elemento que modifica a estrutura daquela casa e movimenta a narrativa. Em
relação ao possível envolvimento carnal que a narrativa parece prometer, não se
efetiva em Hóspede, fazendo com que Pardal Mallet fuja do lugar-comum dos
romances daquele período, sem diminuir a importância de seu romance, uma vez
que o seu narrador explora outras possibilidades como são os sentimentos
gerados pela presença de Marcondes na esposa do amigo.
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Fonte:
Paulo Jose Valente Barata (Professor de Literatura UEPA e UFPA. Mestre em Letras - Estudos Literários (UFPA/UERJ, 2012). Graduado em Letras - Língua Portuguesa (UFPA, 2010) e Graduado em Comunicação Social - Jornalismo (UNAMA, 2009): “Da frustração ao ódio: A construção da imagem da Mulher em Hóspede, de Pardal Mallet”. E-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.4, Número 3, maio-agosto, 2013. Disponível em: http://www.uniabeu.edu.br/
Fonte:
Paulo Jose Valente Barata (Professor de Literatura UEPA e UFPA. Mestre em Letras - Estudos Literários (UFPA/UERJ, 2012). Graduado em Letras - Língua Portuguesa (UFPA, 2010) e Graduado em Comunicação Social - Jornalismo (UNAMA, 2009): “Da frustração ao ódio: A construção da imagem da Mulher em Hóspede, de Pardal Mallet”. E-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.4, Número 3, maio-agosto, 2013. Disponível em: http://www.uniabeu.edu.br/
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