09/03/2014

O Hóspede, de Pardal Mallet

 O Hóspede, de Pardal Mallet
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A figura feminina em Hóspede: da frustração à sedução

Conforme já comentado, o romancista Pardal Mallet produz a sua obra nas últimas décadas do século XIX, com uma narrativa nem sempre em sintonia com outras produções coetâneas naturalistas. Publicado em 1887, Hóspede é o romance de estreia do escritor e jornalista sul-riograndense e propõe um enredo a partir de um jogo de sedução que se estabelece entre D. Nenê e o seu hóspede, Marcondes, amigo de Pedro Soares, recém-chegado do Recife.

Quando atentamos ao modo como o narrador descreve a casa e a protagonista da obra, entendemos que, apesar de ter tudo que supostamente poderia subsidiar a presença feminina naquela sociedade paternalista, D. Nenê não era feliz ou realizada, falta-lhe algo que nem ela própria saberia identificar o que é, e que os leitores descobrirão aos poucos, conforme fica claro já nas primeiras linhas da obra:

Como no relógio da parede soassem 4 horas, Nenê, num movimento de desânimo, deixou escorregar-lhe pelo corpo abaixo o jornal que estava a ler distraidamente. Algum pensamento triste acabrunhava-a. Tanto que por sob as madeixas sedosas da franja adivinham-se umas rugazinhas pequeninas a franzir-lhe a testa, aproximando-lhe os sobrolhos levemente arqueados. Veio-lhe um gesto grande de inquietação e com o pezinho delicado batia febrilmente no assoalho. Depois o braço torneado e alvadio, nas curvaturas graciosas fortemente desenhado pela manga estreita do casaco, apoiou-se ao encosto da cadeira de balanço para suster mais comodamente a cabeça gentil dos traços finos numa pureza ideal de Juno. (MALLET, 2008, p. 3. Grifos nossos).

Depreende-se que D. Nenê, além de ser apresentada ao leitor por seu desânimo, é também descrita e idealizada por sua natureza de ‘traços finos numa pureza ideal de Juno’, ou seja, quase uma personagem romântica de tão idealizada pelo narrador, no entanto, envolta na própria frustração devido à repetição rotineira de seus atos. Assim, encarna um ideal pensado de feminino.

A referida personagem representa, a priori, o lugar ocupado pelo feminino no século dezenove que requeria uma mulher submissa, representação máxima da base familiar, a sustentação moral da casa, incumbida da educação dos filhos. Norma Telles sugere que no citado período, o papel da mulher é redefinido, e conjeturas acerca do caráter dessa mulher são propostas da seguinte forma:

O discurso sobre a ‘natureza feminina’, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando ‘usurpadora’ de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal. (TELLES, 2000, p. 401. Grifos da autora)

De acordo com o salientado por Telles, a figura do feminino estava engendrada em duas proposições: ou era reprodutora de um “discurso do bem” ou de um “discurso do mal”, assim, ou se enquadrava no modelo idealizado de mulher definido pelos espaços sociais do período ou rompia com esse ideal, indo em direção a atribuições que não lhe eram devidas. D. Nenê segue esse padrão, classificaríamo-la, portanto, como ‘força do bem’.

O que cabia, portanto, à mulher era reproduzir um protótipo idealizado por homens, uma vez que lhe era negada a autonomia para ela própria redesenhar sua posição naquele cenário, assim, cabia-lhe a encenação de um modelo de que não era produtora, ou ainda, “a encarnação (...) de uma vida sem história própria” (TELLES, 2000, p. 401.), uma vida pensada por homens.

Para corresponder ao imaginário proposto, a mulher se via envolvida em uma atmosfera restrita ao lar e às obrigações que esse espaço lhe requeria. Ingrid Stein sentencia que, no século XIX, a mulher que pretendesse ser bem aceita socialmente deveria limitar-se à posição dentro de família, à educação, às regulamentações legais que lhe diziam respeito ou à sua sexualidade – verifica-se a sua nítida discriminação em relação ao sexo
masculino, condição correspondente à visão. Na ideologia da época, da mulher como um ser naturalmente inferior, e, portanto, assim justificada. (STEIN, 1984. p. 53).

Reiterando esse perfil traçado por Stein, concluímos que à mulher restava exercer papéis condizentes com esse ideal. Aceitá-los implicaria sustentar uma figura de que ela não era propositora, ou seja, ser mulher, socialmente aceita, significaria vestir um ideal já sacramentado de feminino. E a protagonista desdenhada pelo narrador de Pardal Mallet veste esse ideal, inclusive com sua sexualidade apagada até a chegada de Marcondes, quando a personagem começa a se questionar se fizera uma boa escolha casando-se com o marido ou, ainda insinuando-se sexualmente para Marcondes, com quem mantém um jogo de sedução, amor e ódio.

Quando chega à casa do casal, Marcondes causa certa repulsa naquela mulher, e aqui questionamos até que ponto não se trata de encantamento reprimido, pois Nenê era uma
senhora cumpridora de suas obrigações familiares pertinentes ao seu sexo naquele contexto.

Aos poucos, estando o marido ausente para trabalhar, D. Nenê começa a encontrar afinidades com aquele homem, as quais não tinha com seu esposo. O trecho a seguir, apesar de extenso, é preciso em determinar tais afinidades.

 Foi a sala de visitas o ponto escolhido para a reunião. Além de ser ela muito clara e confortável, era aí que se achava o piano e Nenê poderia distraí-los executando diversos trechos clássicos de que gostava muito. E, como Marcondes aproveitasse o ensejo para fazer um paralelo entre a música alemã e a italiana, que lhe agradava muito mais, a moça engajou uma nova discussão, apreciadora como era de Beethoven e Mozart. Cada qual forcejava em produzir argumentos em seu favor, cantarolando trechos; os dois sozinhos, junto ao piano, [...] Pedro não entendia nada de música e nas suas horas de pilhérias chegava mesmo a dizer que o piano fazia um barulho infernal a incomodar-lhe os ouvidos. Mas nesse momento ele estava com boas disposições, tanto que quis intrometer-se na conversa e concluiu no meio de gargalhadas que a música mais harmoniosa era a dos sinos de igreja quando dobravam por causa de algum defunto.  Nenê não gostava, porém, dessas caçoadas. Quem não entendia do negócio devia conservar-se calado! E o Pedro fez-se muito sério. [...] Ao menos para não ficar calado quis dirigir a conversa para outro terreno e lembrou ao amigo as aulas do Matias. Como a moça desejasse explicações sobre as risadas com que foi acolhido este nome, entraram em detalhes. O Matias era o professor de música lá do Externato de Pedro II. Um bom homem, coitado, mas muito tolo e que se deixava ridicularizar pelos rapazes! [...] Enfim, como não se fizesse exame da cadeira, só aprendia quem tinha vontade! E o Pedro disse então à mulher que o Marcondes era exatamente um daqueles que, no tempo, mais vocação havia mostrado.

O rapaz desculpava-se, fazia-se de modesto. Era verdade que tinha algum gosto para a coisa e que chegara mesmo a aprender um bocadinho de flauta! Mas não passava de um
curioso! Nenê queria porém ouvi-lo e, como ele dissesse que trouxera uma, pediram-lhe
muito para que a fosse buscar. Exatamente ela tinha uma música com acompanhamento e lhe a partitura, que os dois examinaram enquanto o Pedro insistia e dizia ao amigo que
não se fizesse de tolo e se deixasse de cerimônias. E tais foram os rogos e os pedidos que lhe dirigiram que o Marcondes viu-se obrigado a fazer-lhes a vontade. Começaram então que lhe parecia muito fácil Rápida em seus desejos, revolveu logo a estante e mostrou lhe a partitura, que os dois examinaram enquanto o Pedro insistia e dizia ao amigo que não se fizesse de tolo e se deixasse de cerimônias. E tais foram os rogos e os pedidos que lhe dirigiram que o Marcondes viu-se obrigado a fazer-lhes a vontade. Começaram então de parte a parte os ensaios, cada qual trabalhando por acertar o compasso, e no fim de alguns instantes tiraram completamente a música e deram princípio à execução. O Pedro aplaudiu-os vivamente com grandes e estrepitosas palmas. (MALLET, 2008, pp. 19-20. Grifos nossos)

Essa cena em que Nenê entrevê no amigo do marido características que este não tinha e que ela apreciava, são construídas pelo narrador a fim de se perceber que Pedro começa a ficar deslocado dentro de sua própria casa, esforçando-se para não ficar alheio às conversas da reunião, assim como para demonstrar que Nenê ressente-se de ter um marido não apreciador de música como ela, paralelo esse que se dará com Marcondes, devido ao elogio pronunciado por Pedro.

A partir desse momento, reconhecendo semelhanças entre a sua personalidade e a de Marcondes, ela começa a vislumbrar naquele homem o par ideal, e passa a ser descrita elo narrador segundo a sua felicidade, opostamente ao modo desanimado com que foi introduzida na narrativa.

Nenê, essa nadava em contentamentos. Havia tanto tempo que ela sonhava encontrar alguém que a acompanhasse ao piano, com quem pudesse conversar sobre música, que a
compreendesse enfim! E instintivamente estabelecia um paralelo entre o marido e o Marcondes. Se ela fosse casada com alguém nessas condições como havia de ser feliz! (MALLET, 2008, p. 19.)
Assim, entre os dois estabelece-se uma comunicação que não há entre Nenê e seu esposo, devido ao gosto de ambos por música clássica. Desse gosto compartilhado, nasce uma atração e um jogo de sedução mútua, conforme exposto nos excertos a seguir:

De tudo isto ia se formando entre os dois uma grande intimidade. Nenê já abandonara completamente os modos cerimoniosos de tratamento e às vezes chegava mesmo a servir-se se para com ele desse tu que nivela os terrenos e suprime as distâncias. Depois da execução de cada partitura, quando ainda vibravam-lhes aos ouvidos os acordes sentimentais e tristonhos de Chopin, a moça fitava-o nuns olhos quentes de delírio, como a lhe agradecer aqueles instantes de ventura que lhe tinha proporcionado. (MALLET, 2008, p. 76).

A sedução construída por meio do gosto musical que ambos partilham não chega a efetivar-se sexualmente, no entanto, passagens demonstram que tal desejo surge entre as
personagens, chegando ele a desejar tocar seus seios e possuí-la sexualmente, conforme se vê em:

O busto encantador das curvaturas graciosas e carnações sadias de Nenê aparecia-lhe animado com aquele sorriso de desejos que a moça lhe dirigira havia pouco tempo quando lhe pedia que viesse buscar a flauta para acompanhá-la. No final das contas só podia ser uma conquista, cheia de honrarias para quem para quem a conseguisse, prometedora de felicidades sem fim! E recordava todas aquelas palestras da vida acadêmica em que os companheiros afirmavam não haver mulher que não tivesse sua hora de fraquezas. Repugnava-lhe a forma genérica e absoluta da proposição. Mas por que Nenê não seria dessas que caem?! (MALLET, 2008, pp. 68-9).

Em dado momento do romance, quando Marcondes resolve sublimar seus desejos e extravasá-los com Linda, empregada da casa, deixa claro que o faz também para provocar ciúmes em Nenê. Atitude essa que explicita a sedução já construída entre ambos, pois chegam a ter sentimentos de posse.

O rapaz fazia-se, porém, distraído, raramente acertando o compasso, voltado para a Linda a quem parecia fulminar com os seus olhares ternos a segredarem umas declarações de amor. E como observasse que Nenê apercebia-se dos seus manejos e não prestava mais atenção à música, continuou, procurando fazer-se mais notado, muito contente em ter posto em prática o seu plano, prevendo desde já uma próxima cena de ciúmes veementes após a qual a moça se lhe entregaria inteira e completamente, pedindo-lhe que não fosse tão mau, que a amasse pelo menos um bocadinho! [...] Desde então, já nas conversas da sala, já durante o chá, Nenê conservou-se muito irascível e cheia de bruscarias. Forcejava em atrapalhar todos os colóquios do Marcondes com a Linda; o rapaz, que notava estas súbitas transformações, fazia-se mais amável para excitá-la e provocar-lhe a tão ansiosamente esperada cena de ciúmes (MALLET, 2008, p. 96).

Conforme já afirmamos anteriormente, o narrador de Hóspede quebra com um protótipo de narrativa naturalista, ao fugir do que se tornou clichê entre os romances do período e opta por não efetivar a traição que todas as cenas de envolvimentos entre Nenê e Marcondes prenunciavam, de certa forma, frustrando o leitor acostumado com uma narrativa em que tais elementos levassem a tal fim.

Assim sendo, o final da narrativa propõe um retorno ao começa da história, uma vez que o hóspede do título sai daquela casa, ou seja, o elemento estranho àquela sociedade é extirpado do convívio comum, como uma doença que precisa sair de um corpo são, aproximando um pouco a estrutura de Hóspede daquela experimentada em outros títulos
naturalistas que seguiram a cartilha de Zola.

Assim como uma doença sarada, Marcondes deixa marcas com as quais aquelas personagens, principalmente Nenê, terão que conviver, como os rancores na esposa de seu amigo, que viu a sua chance de ter um envolvimento extraconjugal falhar. Porém, esse retorno dá-se em termos, Nenê já sabe o que lhe falta e experimenta outros sentimentos como desejo, amor e ódio pela mesma pessoa que não o seu marido.

Agora a moça tinha-lhe uns ódios e uns rancores veementes. [...] odiava-o por causa desse amor que ainda lhe tinha, [...], por todas estas vezes em que estivera junto a ele a palpitar de sensualidades, por não se ter ele aproveitado dessas ocasiões que ela inconscientemente lhe oferecera tantas vezes! (MALLET, 2008, p. 103.)

De momento para momento aumentava-lhe o ódio que dedicava ao Marcondes. Não podia mais aturá-lo e ficava nervosa com só ouvir-lhe a voz. Ele a fizera sofrer tanto! E sem formular bem claramente a acusação, sem mesmo compreendê-la inteiramente, exprobava-lhe o ter ofendido a sua honradez e despertado a sua sensualidade, nem maculando a primeira, nem satisfazendo a segunda. Ela perdoar-lhe-ia tudo, uma declaração forte e veemente, uma audácia espantosa, o segurá-la de repente quando eles estavam a sós e beijá-la, beijá-la por muito tempo, indefinidamente. Nunca, porém, o que fizera o Marcondes – excitá-la, fazer-lhe passar pela nuca uns hálitos quentes de arreitações para largá-la em seguida exausta e não satisfeita, a pedir mais, a pedir tudo e sem conseguir coisa alguma – espécie de gota d’água a aviventar a sede de quem a prova nos lábios ressequidos pela abstinência! (MALLET, 2008, pp. 107-8).

Assim, consideramos que há um jogo de sedução explicitado entre Marcondes e Nenê e tal jogo é patente como elemento que modifica a estrutura daquela casa e movimenta a narrativa. Em relação ao possível envolvimento carnal que a narrativa parece prometer, não se efetiva em Hóspede, fazendo com que Pardal Mallet fuja do lugar-comum dos romances daquele período, sem diminuir a importância de seu romance, uma vez que o seu narrador explora outras possibilidades como são os sentimentos gerados pela presença de Marcondes na esposa do amigo.


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Fonte:
Paulo Jose Valente Barata (Professor de Literatura UEPA e UFPA. Mestre em Letras - Estudos Literários (UFPA/UERJ, 2012). Graduado em Letras - Língua Portuguesa (UFPA, 2010) e Graduado em Comunicação Social - Jornalismo (UNAMA, 2009): “Da frustração ao ódio: A construção da imagem da Mulher em Hóspede, de Pardal Mallet”. E-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.4, Número 3, maio-agosto, 2013. Disponível em: http://www.uniabeu.edu.br/

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