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Dona Guidinha: a (in)versão no sertão
No contexto social acima
mencionado em que as mulheres, notadamente as nordestinas, eram treinadas para
desempenhar o papel de mãe e as chamadas "prendas domésticas", num
casamento quase sempre arranjado, tão logo se percebessem os primeiros sinais
da adolescência, Dona Guidinha rompe com essa estrutura ao escolher, ela
própria, o marido, e somente aos vinte e dois anos, idade em que muitas moças
já eram consideradas solteironas ou, na acepção de Showalter (1993),
"mulheres sem par". O narrador evidencia que a escolha de Dona
Guidinha não se deveu ao fato de já se achar madura e não ter outras alternativas,
ou ainda pelo fato de não ter muitos pretendentes. Ao contrário, "parece
que primeiro quis desfrutar a vidoca" (DGP, p.7); e, apesar de ser
descrita como "feiosa, baixa, entroncada, carrancuda ao menor enfado"
(DGP, p.11), despertava nos rapazes tamanho apego que um deles teve que ser
arrancado à força bruta, para dela se afastar. Tampouco era motivo de tanto
interesse por parte dos rapazes o poder econômico de que dispunha Dona Guidinha,
posto que, esclarece o narrador, "Naquele sertão havia por esse tempo
muita abastança, por modo que um grande pecúlio não era lá nenhum desses
engodos" (DGP, p.10).
Filha única, o que já descaracteriza
a estrutura familiar típica nordestina, em que as famílias se constituíam em
sua base por uma prole numerosa, Dona Guidinha arcava, sozinha, com a
responsabilidade de gerir seus recursos, administrar a fazenda e se fazer
respeitar, pois, órfã de mãe, fora criada pelo pai, que, ao que consta, não se
lhe impunha qualquer traço de autoridade. Essa situação se coaduna com a
personalidade forte e autoritária que, desde a mais tenra infância, já se
evidenciava:
Aos dez anos, achando que já não
era para andar de ancas, pois já lhe gabavam a avó que parecia ua mocinha,
obrigou o pai a mandar fazer-lhe um cilhão pequeno, apropriado aos seus
quadris.
Aos catorze anos, quando as
nossas meninas são feitas de amor e susto, Guidinha atravessou o impetuosos
Curimataú, de margem a margem, só porque uma outra duvidou. (DGP, p.10).
Posto que escolhera o marido,
atitude, essa, desprovida de qualquer interesse econômico ou outro que o valha,
ou ainda o sentimento de amor romântico que despertava nas moçoilas da época o
sonho dourado de constituir família e mudar sua condição social, Dona Guidinha
impunha a lei em casa. A última palavra era sempre sua. Não só em casa, mas em toda
a região onde o seu poder se propagava. Na vida política, religiosa e
comunitária do lugar, respeitada e temida, impunha sua autoridade, capaz de
fazer e desfazer casamentos, mandar prender e mandar soltar, proteger e
perseguir, tendo sempre o marido a reboque de suas ações.
Esses traços de sua forte
personalidade, revestidos de atitudes ditas masculinizadas por não possuir um
modelo de feminilidade, posto que fora criada pelo pai, fizeram com que Flora Sussekind
(1984) a considerasse o exemplo mais pertinente em nossa literatura da donzela-guerreira,
em oposição às "histéricas" que então povoavam os romances
naturalistas em voga à época.
O tema da donzela-guerreira tem
como representante mais fecundo o mito das Valquírias e das Amazonas. Os gregos
consideravam as Amazonas uma espécie bárbara, por não se adequarem ao seu
sistema de leis e não demonstrarem qualquer conhecimento relativo à navegação
ou à cultura agrícola. Eram guerreiras que combatiam a cavalo e armadas com arco.
Conta a lenda que, para maior desembaraço e destreza nas batalhas, elas
queimavam o seio direito ─ daí o nome de Amazonas (a-mazôn: "sem
seio"). Eram, sobretudo, inimigas do homem e do casamento, por encará-los
como sujeição e punição.
Assim como as Amazonas11, as
Valquírias reuniam todas essas características, além do pendor para as artes
marciais, normalmente próprias do homem. Fica evidente, nas duas figuras, o
relevo ao lado agressivo. A elas não interessa tomar o lugar do homem, e sim eliminá-lo,
torná-lo subalterno. A imagem da mulher guerreira se expandiu e tomou forma no inconsciente
coletivo, adquirindo outras particularidades em acordo com o contexto em que se
processa. Outras características foram se incorporando, até chegar ao arquétipo
da donzela-guerreira como aquela que "imita", ou que possui
características marcadamente masculinas.
Da vestimenta às ações, tudo na
donzela-guerreira se configura como uma não-aceitação, muitas vezes por vontade
própria, outras por imposição circunstancial. O fato é que, muitas vezes, à
donzela-guerreira, se incorporam outras denominações, como, por exemplo,
mulher-macho, pela proximidade aparente e por ser, de certa forma, o homem o modelo
a ser perseguido, seja nas ações, seja no comportamento.
Walnice Nogueira Galvão, em seu
livro A donzela guerreira:um estudo de gênero, faz um mapeamento da aparição do
tema da donzela-guerreira na literatura, na mitologia, nas mais diferentes
civilizações, de Mulan, a chinesa do século V que se travestiu de homem para substituir
seu pai na guerra contra os tártaros, a Diadorim, personagem de Grande sertão:veredas,
que, masculinizada nos trajes e ações, passa a fazer parte do bando de jagunços
de Riobaldo. Esse estudo vem atestar a recorrência desse tema no inconsciente coletivo.
Os arquétipos da mulher viril, donzela
guerreira, megera indomada, mandona desabusada, se mantêm vivos, principalmente
no imaginário masculino, porque representam a transgressão de nossas categorias
sexuais. À mulher, não se poderiam atribuir poderes e saberes historicamente
concebidos como do reino masculino. Era compreensível, portanto, a utilização
de adjetivos estereotipados que, de certa forma, preservassem o tipo de mulher desejado
e difundido pelo universo masculino.
O comportamento feminino e suas
regras de convivência na sociedade eram estabelecidos também e principalmente
segundo o ethos da tradição
judaico-cristã, que
delimitou nitidamente os papéis
atribuídos ao homem e à mulher, reservando para a mulher o símbolo de Eva,
responsável pela queda original, como sexo fraco que caiu e seduziu o homem,
para sempre considerada como fonte do mal. O pecado original, nesse paradigma, tem
a função de dessacralizar e diabolizar a sexualidade, transformando-a em
maldição.
Referindo-se a estudos acerca da
fase matriarcal da humanidade, em que a mulher representava o sexo sagrado, gerador
de vida; a serpente era o símbolo da sabedoria divina, que se renovava sempre;
a árvore da vida como liame entre o céu e a terra; o êxtase e o conhecimento
místico como conseqüência da sexualidade sagrada; Muraro (2002:95) afirma que o
domínio patriarcal engendrou um processo de culpabilização das mulheres no
esforço de lhes tomar o poder, em que
os ritos e símbolos sagrados do
matriarcado são diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato
primordial com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino
anterior. Isso foi feito com tal sucesso, que até os dias de hoje nos
perguntamos se efetivamente existiram as deusas-mães e uma fase matriarcal da
humanidade.
Esse sentimento em relação à
mulher reflete, sem dúvida, o medo pelo desconhecimento dos assuntos femininos,
bem como uma atração mórbida por ela, devido à sexualidade culturalmente
reprimida. Não sem motivo, portanto, a associação da mulher à figura do diabo
justificou, desde tempos imemoriais, uma infinidade de atrocidades e atos bárbaros
cometidos principalmente pela Igreja, na tentativa de aplacar aquilo que lhe ameaçava
o poder e de ocultar o desconhecimento e o pavor que se tinha então da condição
feminina.
A Igreja católica e mais tarde a
protestante tiveram ações decisivas no expurgo do que se passou a denominar
nocivo ao convívio social. Isto se comprova através dos tribunais da Inquisição
que não hesitaram em torturar e assassinar em massa aqueles que eram julgados heréticos
ou bruxos. Dentre estes, as mulheres formavam a grande maioria. Na Introdução Histórica
que faz ao livro O martelo das feiticeiras (2004), Rose Marie Muraro alude ao pensamento
de Michel Foucault, para se reportar ao controle que se estabeleceu sobre o
corpo e a sexualidade como reforço ao sistema capitalista que então se forjava.
A partir daí, engendra-se a construção do "corpo dócil do futuro trabalhador
que vai ser alienado do seu trabalho e não se rebelará". (2004:14). Com
isso, atinge-se um nível máximo de controle chegando até ao controle subjetivo.
Já não era necessário o controle institucional. A normatização, as regras de
vivência e convivência se achavam calcadas no íntimo da s mentes.
A transgressão dos preceitos
religiosos era associada, indelevelmente, à transgressão sexual. Nesse sentido,
as mulheres foram punidas exemplarmente. Destacamos aqui algumas teses
fundamentais do Malleus Maleficarum, destacadas por Muraro, que propiciariam e justificaram o
expurgo do feminino:
a) E este mal é feito
prioritariamente através do corpo, único "lugar" onde o demônio pode
entrar, pois, "o espírito [do homem] é governado por Deus, a vontade por
um anjo e o corpo pelas estrelas" (Parte I, Questão I). E porque as
estrelas são inferiores aos espíritos e o demônio é um espírito superior, só
lhe resta o corpo para dominar. b) E este demônio lhe vem através do controle e
da manipulação dos atos sexuais. Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se
do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro homem pecou
e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável de todos os homens.
c) E como as mulheres estão
essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as agentes por excelência
do demônio (as feiticeiras). E as mulheres têm mais conivência com o demônio
"porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher
pode ser reta" (I, 6).
A perseguição que se processou às mulheres a
partir de então se justificou na proibição do prazer como elemento diabólico,
muito embora esse caráter demoníaco do gozo esteja presente em toda cultura, muito
antes do cristianismo. O culto mariano irrompe, então, no século XII como
válvula de escape para a Igreja. Não era mais possível deixar de considerar a
força de que dispunha a mulher no trato das questões sociais e religiosas e a pressão
exercida por ela para se fazer reconhecer. A Igreja começava a perder terreno
para outras manifestações religiosas que acolhiam a mulher como ativa
participante. Elege-se, portanto, como figura redentora para a mulher a imagem
de Maria como o arquétipo da Grande-Mãe, simbolizando a virgindade e a
maternidade, elementos que justificam a sexualidade dissipada do prazer.
Recorrendo à teoria junguiana, percebe-se que o arquétipo da anima já se
encontra bastante contaminado por aspectos sombrios e reguladores que criam uma
imagem individuada, pois toda manifestação simbólica implica também um sistema social,
com suas regras e seus valores, portanto, ideológico.
Mesmo considerando a indubitável
submissão histórica que designou o lugar da mulher na sociedade e o peso que
tiveram, ao longo de oito mil anos de patriarcado, as instituições religiosas
na veiculação da idéia de que Eva foi criada a partir da costela de Adão, para
ser sua companheira e para ser responsável pela preservação do casamento e pela
felicidade do lar – aí sugerida a idéia também de fertilidade e maternidade –,
portanto, um padrão eterno de conduta para a mulher, do casamento como
instituição reguladora e purificadora da sexualidade, não se pode deixar de
perceber também que, no inconsciente coletivo, principalmente no imaginário
masculino, foi-se criando uma outra imagem de mulher, calcada no caráter
transgressor e oculto, paradigma que bem pode ser representado pelo mito de
Lilith.
O mito de Lilith está ligado aos
grandes mitos da criação. Primeira mulher de Adão, Lilith é o mito da exclusão.
Criada igual a ele e não a partir dele: "Deus criou o homem à sua imagem,
à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou."(Gên. 1:27).
Nessa primeira fase, o mito genésico evidencia-se como a composição de duas
partes distintas: homem e mulher criados separadamente à imagem e semelhança do
criador. Num segundo momento, ao tratar da formação do homem e da mulher, o
texto bíblico, diferentemente da passagem anterior, já prenuncia a criação da
mulher como um desejo do homem, pós-homini: "Iahweh Deus disse: ' Não é
bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda."
(Gên. 2:18) Tendo dado Deus o poder a Adão de nominar todas as coisas, fê-lo dormir
para, em seguida, retirar uma de suas costelas e em seu lugar fazer crescer
carne.
"Depois da costela que
tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o
homem exclamou: Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!
Ela será chamada 'mulher', porque
foi tirada do homem!" (Gên. 2:22-23) O uso da expressão em destaque
evidencia a existência de uma primeira mulher, concebida não a partir do homem
mas igualmente a ele. Bastante sutis são os registros no texto bíblico
relativos à existência de Lilith. Para Sicuteri (1985:23), "a lenda de
Lilith, primeira companheira de Adão, foi perdida ou removida durante a época
de transposição da versão jeovística para aquela sacerdotal, que logo após
sofre as modificações dos Pais da Igreja." O mito de Lilith pode assim ser
resumido, segundo Sicuteri (p.35-40):
O amor de Adão por Lilith,
portanto, foi logo perturbado; não havia paz entre eles porque quando eles se
uniam na carne, evidentemente na posição mais natural ─ a mulher por baixo e
homem por cima ─ Lilith mostrava impaciência. Assim perguntava a Adão: "─
Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo-me abrir-me sob teu
corpo?" Talvez aqui houvesse uma resposta feita de silêncio ou perplexidade
por parte do companheiro. Mas Lilith insiste: "─ Por que ser dominada por
você? Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual". Ela
pede para inverter as posições sexuais para estabelecer uma paridade, uma
harmonia que deve significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas.
Malgrado este pedido, ainda úmido de calor súplice, Adão responde com uma
recusa seca: Lilith é submetida a ele, ela deve estar simbolicamente sob ele,
suportar o seu corpo. Portanto: existe um imperativo, uma ordem que não é
lícito transgredir. A mulher não aceita esta imposição e se rebela contra Adão.
É a ruptura do equilíbrio. Qual é a ordem e a regra do equilíbrio? Está
escrito: "O homem é obrigado à reprodução, não a mulher".
... À recusa de Adão em conceder
a inversão das posições no coito, ou seja, recusa em conceder a paridade
significativa à companheira, Lilith pronuncia irritada o nome de Deus e,
acusando Adão, se afasta.
Enquanto isso sucede, Adão é
colhido por uma sensação angustiosa de abandono. É a hora em que o Sol se põe e
estão descendo as primeiras trevas da noite de Sábado.
Lilith se afastou. O homem havia
oposto um "não" à sua mulher. E vêm as trevas; pela segunda noite vem
o escuro, o mesmo escuro da Sexta-feira na qual Jeová Deus criou os demônios.
( ... )
Agora há o desespero, o amargor
por haver perdido Lilith. Pergunta ao Pai e o Pai quer saber a causa do litígio
e compreende que a mulher desafiou o homem e, portanto o divino.
Enfim, Lilith voou pra longe, em
direção às margens do Mar Vermelho, depois de haver profanado o nome de Deus
pai. ( ... ) No momento crucial no qual Adão lhe negou o desejo, ela fugiu ao
Mar Vermelho, agora odiosa a seu esposo. Jeová Deus proferiu sua ordem: "O
desejo da mulher é para o marido. Volta para ele".
Lilith não responde com
obediência, mas com recusa: "Eu não quero mais ter nada a ver com meu
marido". Então Jeová manda em direção ao Mar Vermelho uma formação de
anjos. Eles alcançam Lilith: acham-na nas charnecas desertas do Mar Arábico,
onde a tradição popular hebraica diz que as águas chamam, atraindo como ímã,
todos os demônios e espíritos malvados. Lilith se transforma: não é mais a
companheira de Adão. É o demoníaco manifesto, está rodeada por todas as
criaturas perversas saídas das trevas. Está num lugar maldito, onde se produzem
espinhos e abrolhos (Gên. III, 18); mosquitos, pulgas, moscas malignas infectam
os seres; urtigas e cardos ferem o pé, covis de chacais se confundem cós as
pedras, cães selvagens se encontram com hienas e os sátiros se chamam uns aos
outros em lascivas seduções orgiásticas (Isaías XXXIV, 13-15).
Os anjos com a chama e a espada
fulgurante gritam a Lilith a ordem de voltar para junto de Adão pois, se não o
fizer, será afogada. ( ... ) Lilith se recusa a seguir os três anjos e lhes
diz: "Se eu vir os vossos três nomes ou seus semblantes sobre um recém-nascido
como um talismã, prometo poupá-lo".
Os anjos, de certo modo, aceitam
de bom grado a má sorte e aceitam pelo menos a concessão parcial de Lilith.
Eles voltam ao Éden, mas Jeová Deus já havia decidido punir Lilith exterminando
seus filhos.
Quem eram eles? Sempre no Alfa
Beta de bem Shira lemos que Lilith, acasalando-se com os diabos, gerava cem
demônios por dia, os quais eram chamados Lilli,. Um nome próximo a Lilith, que
deriva do sumérico e em suas várias
definições acadianas significa "multidões" ou então "tolo".
Os pequenos demônios foram mortos
pela mão implacável de Jeová Deus. A este cruento extermínio, verdadeira guerra
entre o Criador e suas criaturas, se opõe uma vingança de Lilith: ela mesma
enfurece seus próprios filhos, ou melhor, ajudada por um outro demônio
feminino, segue por todo lugar estrangulando de noite as crianças pequenas nas
casas, ou surpreende os homens no sono induzindo-os a mortais abraços.
O que torna o mito de Lilith tão
recorrente e tão presente no nosso imaginário? Há várias possibilidades que se
prestam a responder tal questão. Ficaremos com duas assertivas que nos parecem
mais pontuais: primeiramente, o mito representa a primeira transgressão da história
da humanidade, a revolução contra a Lei do Pai, ou, no dizer de Jacques Brill,
"a manifestação de um poder que desafia o divino." Em segundo lugar,
é a primazia do prazer, o direito ao gozo e a possibilidade de escolha para o
papel e a função da mulher.
Não sem razão, a figura de Lilith
foi banida dos textos sagrados e associada a figuras demoníacas que devoravam
crianças, copulavam com o diabo e blasfemavam contra Deus, pois Lilith
representa o protesto feminino diante da dominação masculina. É a liberdade de escolher
quando e para onde ir, a ânsia de curiosidade e conhecimento que nos leva a descoberta
de nós mesmos, portanto, tudo aquilo que ameaça o poder patriarcal constituído.
Mas é quanto à sexualidade que a
transgressão ocorre de maneira mais contundente. O prazer e o gozo advêm como
características inerentes à mulher, de maneira distinta da capacidade de procriação.
Para Mircea Eliade (2004:11),
"o mito conta uma história sagrada, narra um fato importante ocorrido no
tempo primordial, no tempo fabuloso dos começos". Sagrada porque verdadeira,
pois se refere a realidades, no sentido de que algo realmente aconteceu. O
mito, portanto, estabelece sempre uma conexão com o princípio, com a criação.
São as ações de Entes Sobrenaturais que promovem a irrupção do sagrado na
fundamentação do Mundo.
Segundo Eliade, a constituição do
homem, sexual, social, cultural, da forma como hoje se apresenta, só é possível
graças à intervenção desses Entes Sobrenaturais, em eventos que aconteceram in
illo tempore. O mito é explicativo e revelador. É ele que faz a ligação entre
os eventos que acontecem hoje e o porquê acontecem.
Ampliando a definição de Eliade,
Gilbert Durand admite a dinamicidade do mito que, representado por símbolos,
arquétipos e schémes, pode organizar-se
em estrutura narrativa, impulsionado por um tema. O mito é um sistema oco,
preservado por uma estrutura fixa.
Nessa estrutura, infinitas
possibilidades arquetípicas, simbólicas, imagéticas, podem se infiltrar gerando
novos modelos e novas estruturas.
Na esteira dessas concepções,
Carl Gustav Jung concebe o mito como a ligação existente entre o consciente e o
inconsciente coletivo, através de imagens arquetípicas.
Arquétipo entendido como modelo
primevo, cuja idade é impossível de se determinar. Nessa relação entre o
arquétipo primitivo e o mito, o inconsciente coletivo produz símbolos capazes de
representar, em aparência, a essência da idéia inicial.
Seja numa perspectiva histórica,
sociológica, antropológica ou psicanalítica, o mito é sempre o mito da criação.
É o evento primeiro que modelou uma ação específica ou um modo de vida
particular. Assim é que se compreende a capacidade que possui o mito de
permanecer vivo e de ser reconhecido, mesmo em arquétipos diferentes. É o caso
do mito de Lilith, que em si encarna o arquétipo da transgressão, da sedução e
do poder. Podemos percebê-lo, portanto, na estória de Mélusine, das Amazonas e
das Valquírias, como mencionamos acima, de Dalila, de Isolda, de tantas outras
personagens femininas presentes também nas tragédias gregas, a exemplo de
Medéia, Antígona, etc.
Referimo-nos anteriormente ao
cuidado exacerbado que manteve sempre o sistema patriarcal em separar e definir
claramente o mundo e os papéis masculinos e femininos. Como forma de assegurar
um sistema, polarizando os seres humanos pelo sexo, a sociedade patriarcal,
alimentada pelos preceitos cristãos, procura revestir de caráter masculinizado
toda mulher que ouse fugir do estereótipo para ela designado. Na literatura e
nas artes em geral, inúmeros são os exemplos que patenteiam essa afirmativa,
através de imagens que se destinam a fixar essas normas e concepções. A Idade
Média situa-se como um celeiro bastante profícuo dessas tendências. Vários
foram os medievalistas que, em seus estudos, se debruçaram sobre o tema da
mulher e sua inserção social. Destacamos aqui o trabalho de Hilário Franco
Júnior (1996), que empreende acurada análise em torno da imagem de Eva barbada,
representada na abóbada da abadia de Saint-Savin, entre os séculos VII e IX.
Na representação da narrativa
clássica sobre a criação da mulher, há, na abóbada da abadia, uma cena em que
Eva, com barba, é apresentada a Adão. Segundo a análise desse autor, a
explicação da presença da barba de Eva estaria na cultura folclórica da época,
e não num "acidente de trabalho", ou numa brincadeira dos artesãos
responsáveis pela pintura.
Reflete, sobremaneira, um
pensamento corrente à época e baseado em dogmas teológicos.
Para tanto, o autor se reporta ao
Evangelho de Tomás: "toda mulher que se fizer homem entrará no Reino de
Deus" e aos Atos de Paulo, no que se refere ao tema da mulher que, para levar
uma vida espiritualmente superior, deverá se disfarçar de homem.
Franco Júnior ilustra suas
proposições com a estória de Joana, que, no século IX, vestida de forma
masculina para poder acompanhar o amante, acabou por ter acesso à Cúria romana
e foi eleita papa. Nesse caso, alerta o autor, como se tratava de um
"disfarce para fins pecaminosos", ocorreu o retorno à condição
feminina quando Joana deu à luz uma criança, em público, durante uma procissão.
Tudo isso reflete bem o processo de androginização por que passou a mulher,
quase sempre associada à negação da sexualidade.
De lá pra cá, tem sido essa
androginização a "camisa de força" que tenta barrar o afloramento da
sexualidade feminina, padrão arquetípico que tem se reproduzido num sem-número
de obras da literatura ocidental.
Dona Guidinha representa um referencial
de dupla transgressão: a sexualidade é plenamente presentificada, desnudada de
qualquer característica estética e externa masculina.
O narrador nos apresenta Guida
como: "muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco femininas, pouco
mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. Mas aquilo tinha artes do Capiroto.
Transfigurava-se ao vibrar de não
sei que diacho de molas". (DGP, p.11). A androginização em si não aparece.
Entretanto é a figura do narrador, masculino, que refreia a insurgência da feminilidade
como sedução, ao perceber em Guida aspectos diabólicos.
Para Chevalier e Gheerbrant (op. cit), o diabo representa todas as forças
que "perturbam, inspiram cuidados, enfraquecem a consciência",
acentuando, por outro lado, a importância fundamental da libido, sem a qual não
há desabrochar humano. A figura do diabo tem sido, ao longo do tempo, veículo
útil na justificativa dos abusos, proibições e interdições na vida humana, pois
ele possibilita a abordagem de temas censurados, como a contestação à autoridade
estabelecida.
Ao diabo é, portanto, outorgada a
investida na busca do desejo. Essa associação concilia e justifica o
desdobramento entre a mulher e o diabo. É importante perceber com que recorrência
essas atitudes do narrador se avolumam na construção da personagem.
---
Fonte:
Marta Célia Feitosa Bezerra:
“Dona Guidinha: o poço dos desejos”. (Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como
requisito para a obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Orientadora:
Profª. Dra. Beliza Áurea de Arruda Mello). João Pessoa, 2006.
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