12/01/2014

A Normalista, de Adolfo Caminha

 Adolfo Caminha - A Normalista - Iba Mendes
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João da Mata: a coexistência dos contrários

Os protetores são os piores tiranos.”
Lima Barreto


Adolfo Caminha, em seu ensaio intitulado “Em defesa própria”, diz que João da Mata é “um amanuense que se intitula pensador livre” (CAMINHA, 1999. p. 67). Esse comentário deixa claro que, na opinião do romancista, o personagem não é um pensador livre, mas alguém que de forma ardilosa diz ser o que, de fato, não é, ratifica-se isso no romance através de um conjunto de atitudes da personagem. Essa questão será apontada no próprio romance como será visto mais adiante.

O primeiro parágrafo do romance inicia-se pela apresentação de seu nome completo: João Maciel da Mata Gadelha, mas, em todo o romance, o personagem será citado e interpelado apenas por seus apelidos: João da Mata e Janjão, o primeiro conhecido por todos e o segundo, mais afetuoso, apenas por D. Terezinha, que passava por sua legítima esposa. Entretanto esses não são os únicos epítetos dados a ele, posto que antes, quando ainda era mestre-escola no sertão da província, era conhecido como “professor Gadelha, o terror dos estudantes de gramática” (CAMINHA, 1994. p. 15). Todos os cognomes dados a João da Mata sugerem que o personagem se deixava conhecer apenas por disfarces. Sua verdadeira identidade, mascarada por atitudes milimetricamente pensadas, era quase sempre preservada, posto que João da Mata percorrerá o romance praticando mentiras, seduções, trapaças e bajulações.

A alcunha “da Mata” não é explicada pelo narrador, entretanto remete-nos ao lado selvagem da personagem o que, evidentemente, se opõe ao espaço citadino, símbolo de modernização, civilização e progresso, entretanto, diferentemente de outros espaços ligados à natureza, como Campo Alegre e Cocó, é totalmente desprovido de conotações positivas. João da Mata, assim como Maria do Carmo, reside na casinhola do trilho, encardida pelas fuligens da locomotiva, próxima à Estação da linha férrea e, como citado antes, não era casado, mas amigado. Saiu do sertão, onde era professor, por achar que estava “perdendo-se, inutilizando-se e fossilizando-se, por assim dizer, entre um vigário seboso e pernóstico e um delegado de polícia ignorante” (CAMINHA, 1994. p. 17).

De professor, João da Mata foi nomeado “comissário de socorros” na seca de 77 e depois da seca entregou-se, “por uma espécie de ambição egoísta” (CAMINHA, 1994. p. 18), de corpo e alma à política, “visando sempre tirar resultados positivos de suas artimanhas, embora com prejuízo de alguém” (CAMINHA, 1994. p. 18). Tudo o que João da Mata queria era dinheiro. Para ele, a política era uma “especulação torpe como outra qualquer, como a de comprar e vender couros de bode na praia, a mesmíssima coisa; pois não é? Pra tudo é preciso jeito, muito jeitinho [...]” (CAMINHA, 1994. p. 18). Até que, devido a seus conchavos políticos, foi nomeado amanuense, o que para ele era um miserável emprego, o qual se oferecia a qualquer vagabundo. Desgostoso da política, João da Mata volta-se para Maria do Carmo, sua grande obsessão.

Maria do Carmo foi entregue a ele ainda criança e ele acreditava ter direitos sobre ela: “podia mesmo beijá-la – sem malícia, já se deixa ver – nas faces, na testa, nos braços e até, por que não? na boca” (CAMINHA, 1994. p. 19). Essa crença de João da Mata, revelada logo nas primeiras páginas pelo narrador, será uma das características do personagem que mais será retomada no romance, característica esta que demonstra todo o senso bárbaro de propriedade ligado à sua posição de protetor. Para ele, alimentar e educar uma criança seriam motivos suficientes para garantir-lhe a posse, como se a menina fosse um investimento feito por ele e do qual, mais cedo ou mais tarde, poderia tirar proveito.

O comportamento de Maria do Carmo, quando estudava no colégio Imaculada Conceição, “a falar sempre no padre–reitor e na superiora e na Irmã Filomena e outras pieguices” (CAMINHA, 1994. p. 23), contrariava João da Mata: 

Uma coisa assim fazia até vergonha a ele que detestava tudo quanto cheirasse a sacristia. Porque João da Mata dizia-se pensador livre; não acreditava em santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opinião, era uma espécie de mito, uma como legenda mística sem utilidade prática. Isso de colégios internos à guisa de conventos não se acomodava com o seu temperamento. Também fora professor, olé! e sabia muito bem o que isso era – “um coito de patifarias”. Queria a educação como nos colégios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas desenvolvem-se física e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez admirável, tornando-se por fim excelentes mães de família, perfeitas donas de casa, sem a intervenção inquisitorial da Irmã de Caridade. Não compreendia (tacanhez de espírito embora) como pudesse instruir-se na prática indispensável da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no silêncio e na sensaboria de uma casa conventual entre paredes sombrias, com quadros alegóricos das almas do purgatório e das penas do inferno; com o mais lamentável desprezo de todas as prescrições higiênicas, sem ar nem luz, rezando noite e dia – ora pro nobis, ra pro nobis [...] (CAMINHA, 1994. p. 23) 

 Como foi dito no capítulo anterior, João da Mata, apesar de desejar que a educação em Fortaleza seguisse os moldes europeus, não visualiza a emancipação intelectual, social e política das mulheres. Por essas e por outras, podemos dizer que o posicionamento do narrador quanto à personagem João da Mata é duvidoso, posto que o primeiro – o narrador - desdiz os ditos do segundo – João da Mata - e acaba por enfatizar a questão dos pensamentos conservadores e atrasados dessa personagem.

Para o narrador, não existe em João da Mata um pensador livre, mas um homem que, através de discursos e atitudes, simplesmente age em benefício próprio. Fato que ilustra esse posicionamento contraditório de João da Mata, que oscila entre ideias avançadas e atrasadas, é a opinião dele sobre seu próprio casamento, posto que em uma de suas discussões com D. Terezinha, mulher amigada com ele, mas que, como dito acima, se passava por sua legítima esposa, diz: “Fique você sabendo que uma mulher amigada é como se fosse uma fêmea qualquer, ouviu? Se duvidar ponho-lhe no olho da rua!” (CAMINHA, 1994. p. 69). Outra questão é a que se refere à citação acima, sobre a educação livre, a qual, na visão deturpada de João da Mata, só serviria para instruir às mulheres “na prática indispensável da vida social” (CAMINHA, 1994. p. 23), de modo que seu pensamento livre estava desprovido dos verdadeiros propósitos de uma educação emancipadora. Ainda com relação à educação formal oferecida em Fortaleza, João da Mata declara que 

[...] no Ceará não havia colégios sérios. A instrução pública estava reduzida a meia dúzias de conventilhos: uma calamidade pior que a seca. O menino ou menina saía da escola sabendo menos que dantes e mais instruído em hábitos vergonhosos. As melhores famílias sacudiam as filhas na Imaculada Conceição como único recurso para não vê-las completamente ignorantes e pervertidas. (CAMINHA, 1994. p. 24)

Essa crítica de João da Mata é corroborada pela opinião de D. Terezinha, para ela “uma menina inteligente como Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colégio particular, mas um colégio onde ela pudesse aprender o „traquejo social‟ ” (CAMINHA, 1994. p. 24) e, paulatinamente, o narrador vai descortinando o cenário acanhado da sociedade fortalezense.

João da Mata tenta transformar a casa onde reside e a sua própria vida seguindo os moldes europeus. Na sala de sua residência, um espaço estreito, sem teto e ainda com chão de tijolo, dormia um velho piano de aspecto pobre, uma vez que ter um piano em casa, como já analisado antes, era sinal de refinamento burguês, entretanto, a própria aparência da casa “uma casinhola de porta e janela” estava muito mais próxima da realidade provinciana ainda predominante.

Outro posicionamento bastante avançado para a época e defendido por João da Mata dizia respeito à castidade dos padres. Só se relacionava amigavelmente com um padre, o Cônego Feitosa, e isso porque: 

[...] era um sacerdote asseado, inimigo da batina, com afilhadas em casa... E por que não? Os padres são fisicamente (e sublinhava a palavra), anatomicamente, fisiologicamente homens como os outros homens. Portanto assiste-lhes o mesmíssimo direito de procriação, direito natural e até consagrado pela Escritura. O contrário é contrafazer a natureza humana que, afinal, não obedece a preceitos de castidade. Daí, concluía João, daí o desregramento das classes religiosas condenadas a eterno celibato. O próprio Cristo dissera uma parábola cheia de senso e de experiência: “Crescei e multiplicai-vos”
“Por amor de Deus” não lhe falassem em padres. A educação moderna, a educação livre, sem intervenção da batina – eis o que ele queria e apregoava alto e bom som. (CAMINHA, 1994. p. 24)

A crítica feita por João da Mata à Igreja, tal como ocorrido em muitos outros romances naturalistas, condiz com os ideais da escola à qual Adolfo Caminha estava filiado, que supervalorizava o progresso e, em cuja realidade, não havia espaço para as restrições impostas pela religiosidade, contudo, essa crítica, na boca de João da Mata, sofre um certo deslocamento negativo, pois funcionam para montar o seu próprio perfil, uma vez que ser contra os preceitos religiosos era algo bastante apropriado para ele. Se religioso fosse, todos os seus atos o condenariam, mas, sendo avesso à religião, estava isento de qualquer punição divina e poderia, por exemplo, declarar que

[...] queria uma rapariga nova e fresca, cheirando a leite, sem pecados torpes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos do “amor conjugal”. Nunca experimentara o contato aveludado de um corpo de mulher educada, virgem das impurezas do século. E quem melhor que Maria do Carmo, uma normalista exemplar e recatada, poderia satisfazer os caprichos de seu temperamento impetuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! não havia entre ele e a menina o menor grau de consagüinidade, portanto, não podia haver crime nas suas intenções... Se Maria houvesse de cair nas garras de algum bacharelete safado, fosse ele, João da Mata, o primeiro a abrir caminho [...] (CAMINHA, 1994. p. 48)

Outro fragmento importante acerca de João da Mata é sua ida à praia, a fim de ver o embarque do Conselheiro Castro e Silva, que serve apenas para mostrar o quanto João da Mata se esforçava para acompanhar, ainda que sem entusiasmo e desastradamente, os eventos da cidade: “almoçou às carreiras, como quem vai tomar o trem, e abalou, enfiando-se no inseparável e já velho chapéu-chile.” (CAMINHA, 1994. p. 46) Além de João da Mata, muitas outras pessoas foram ao embarque do Conselheiro, “Curiosos de todas as classes, trabalhadores aduaneiros de jaqueta azul, guardas de alfândega e oficiais de descarga com ar autoritário, de fardeta e boné, marinheiros da Capitania, confundiam-se numa promiscuidade interessante.” (CAMINHA, 1994. p. 46).

Esse evento, na segunda metade do século XIX, era novidade, tanto que a Polícia, “formada à porta do quartel, gaguejou o Hino Nacional e o conselheiro, cheio de si, cortejando à direita e à esquerda, muito ancho, seguiu a tomar o escaler d‟Alfândega.” (CAMINHA, 1994. p. 47).

É lícito lembrar que o Conselheiro Castro, mesmo com o calor causticante que fazia, seguia a moda europeia e estava “metido numa sobrecasaca muito comprida”, fato que retoma a questão da inadequação e destaca o desacerto entre a forma de vestir, importada, e as condições locais, no caso o calor. Esse evento mostra o quanto há de ironia na narração caminhiana e também ratifica o comentário de Sebastião Rogério Ponte, quando este diz que a Belle Époque, em Fortaleza, não traduzia, de fato, a realidade da província, mas apenas o desejo da burguesia de seguir o estilo europeu.

Como outras cidades que se desejavam civilizadas, Fortaleza também tinha Paris como referência de modernidade. Assim, a capital foi arrebatada por uma febre de afrancesamento. Ser moderno era acompanhar as modas vindas de Paris, usar expressões em francês, abrir lojas com nomes franceses ou fazer como os fotógrafos cearenses Moura e Eurico Bandeira, que se tornaram Moura-Quineau e Eurico Bandière. (GILMAR, 2009. p. 76)

João da Mata, além do farsante que era, costumava espalhar mexericos acerca da vida das pessoas de seu entorno. Passo a passo verificamos isso no fragmento em que tenta persuadir o Loureiro, noivo de Lídia, sobre o comportamento de sua sogra: “... que não se iludisse, que a Campelo recebia fora de horas o Batista da feira; que ele, João da Mata, vira muitas vezes, com os próprios olhos, o negociante entrar cosido à parede alta noite, como um gato” (CAMINHA, 1994. p. 94) ao que é interpelado pelo noivo: 

Histórias. O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam prejudicar, muito, os créditos da pobre senhora. Absolutamente não acreditava em tais boatos. Conhecia bem o gênio e a vida de D. Amanda para desprezar semelhantes falsidades. Em suma, era da Escola de São Tomé: ver para crer. (CAMINHA, 1994. p. 94). 

Além dessa, muitas outras “fofocas” são ditas por João da Mata e, ainda que verdadeiras, todas tinham por objetivo deflagrar pequenas intrigas, até que ele mesmo e sua família transformam-se em alvos de mexericos; ao ouvir a voz de João da Mata berrando como um danado, a vizinhança chegava às janelas ávida de escândalo. Meninos em fralda de camisa, chupando o dedo, paravam defronte da porta do amanuense, muito espantados, olhando cheios de curiosidade pelas frinchas da rótula. Com esse comportamento, tanto de João da Mata, quanto de sua vizinhança, fica ressaltada a situação acanhada do lugar. Em visita a casa de Lídia e Loureiro, João da Mata declara:

Fazes muito bem, filho, não há nada como se viver no seu cantinho, com sua mulher e os seus filhos, comendo com o suor de seu rosto. Eu, se pudesse, fazia o mesmo – desertaria da capital, do centro da civilização, para viver comodamente, bem longe de toda essa porcaria que se chama sociedade. (CAMINHA, 1994. p. 151)

A trajetória de João da Mata alcança seu clímax quando este consegue seduzir Maria do Carmo, fazendo juramentos e promessas, rogando pela alma da mãe da normalista e por Deus, suplicando que ela não resistisse àquele momento. Depois do defloramento, dá-se a reviravolta na vida do amanuense. Ele tenta, novamente através do poder da palavra, que desta vez não funciona, animar a normalista e fazê-la voltar a ser o que era:

Nunca João fora tão bom para a afilhada como agora: Trazia-lhe mimos da rua, bons-bocados, confeitos, rendas, com uma solicitude paternal, animando-a, prometendo-lhe muitas felicidades, contando-lhe tudo quando ouvia dizer na rua, dando-lhe notícias dos conhecidos.
- Teve febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se.
- Não sei...
- Deixe ver o pulso... Não, nem um bocadinho... Bom, não se amofine, hein, não se amofine. Amanhã, se Deus quiser, pode levantar-se. E baixo:
- Tolice... Morrendo sem que nem para quê! Se continuar, é pior... podem até saber... Isto a gente faz cara alegre e vai para adiante, como as outras, minha tola... Olha a tua amiga, a Lídia... Casou e casou bem... E assim a maior parte... Deixa de tolices. (CAMINHA, 1994. p. 147)

Depois, ao saber da gravidez de Maria do Carmo, decide escondê-la, adotando o método mais utilizado em cidades pequenas: “Que se há de fazer, filha? Agora é ter paciência. Foi uma fatalidade, foi uma fatalidade... Há de se arranjar a coisa do melhor modo possível. Vais aí para qualquer sítio, fora da cidade, e ninguém saberá de coisa alguma.” (CAMINHA, 1994. p. 170).

A partir disso, seguindo a estrutura da maioria dos romances naturalistas, como os de Zola e Eça de Queiroz, João da Mata enfrenta sua decadência, progride no vício de beber aguardente, não consegue impor a D. Terezinha a sua autoridade e tem de suportar-lhe as impertinências, ouvindo tudo calado, como um prego murcho, impotente. Sua decadência se completa com a fuga de D. Terezinha de seu leito matrimonial para não servir-lhe sexualmente e com a morte, durante o parto, do filho que teria com Maria do Carmo: “Por um lado era uma felicidade o pequeno ter morrido, porque isso de filho natural sempre dava que falar às más-línguas e até podia-se descobrir a verdade.” (CAMINHA, 1994. p. 202). Entretanto, ao ver o rosto lívido da criança e os soluços da afilhada, deixa cair “duas lágrimas, as primeiras de sua vida, que rolaram vagarosas nas suas faces magras, como duas linfas cristalinas na aspereza tosca duma rocha”. (CAMINHA, 1994. p. 203)

No final do romance, João da Mata, o mesmo que se intitulava pensador livre, revolta-se com a proclamação da República brasileira: Isto é um país sem dignidade, uma nação de selvagens! Expulsar do trono um monarca da força de Pedro II, mandá-lo para o estrangeiro doente e quase louco, é o cúmulo da ignorância e da selvageria! (CAMINHA, 1994. p. 205)

Em síntese, podemos dizer que João da Mata, tanto em seu discurso, quanto na sua prática, é uma personagem negativa, contraditória e incoerente ideologicamente, movida por ideias e instintos regressivos, que a narrativa apresenta sem procurar justificar.


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Fonte:
Benigna Soares Lessa Neta: “A menina e a província: a espera do progresso no romance a Normalista, de Adolfo Caminha”. (Dissertação submetida ao curso de Pós- Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras, com concentração na área de Literatura Brasileira. Orientadora: Profª. Drª. Irenísia Torres de Oliveira.) Fortaleza, 2011

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