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O
gaúcho de
José de Alencar e a nação como projeto: “romantismo político” à brasileira?
[...]
Mas o projeto alencariano de
invenção da nação não pode ser resumido aos motivos indígenas. De certa forma,
a visada nacionalista e romântica, que buscava “fundar em um passado mítico a
nobreza recente do país”, estava presente em todos os textos do autor: “De resto, Alencar, ainda fazendo ‘romance
urbano’, contrapunha a moral do homem antigo à grosseria dos novos-ricos; e
fazendo romance regionalista, a coragem do sertanejo às vilezas do citadino”
(BOSI, 1983, p. 101). Seguindo a caracterização de romantismo político de Löwy
e Sayre, poderíamos dizer que toda a obra de Alencar é perpassada por oposições
ideológicas equivalentes, como passado/presente, antigo/moderno, campo/cidade,
com desdobramento político semelhante, ou seja, a crítica ao progresso a partir
de valores tidos como tradicionais. Daí o aproveitamento como tema, tão bem
abordado por Schwarz, da condenação da mercantilização das relações sociais nos
romances “urbanos”. Daí, também, o empenho
na descrição e elogio de uma pampa mítica, geograficamente distante dos grandes
centros, e regida por leis quase naturais, não por acaso consonantes com as
grandes questões do romance europeu, como a vingança, no livro O Gaúcho.
Tal obra configura, nesse
sentido, mais um argumento contra a divisão esquemática e superficial dos
textos de Alencar. Se esses compunham parte de um projeto mais amplo de “escrever
a América”, o regionalismo é talvez a manifestação mais concreta da intenção
de escrever o Brasil. O epíteto, semanticamente atrelado aos movimentos
literários geograficamente localizados das primeiras décadas do século XX, não
pode apagar a relação de continuidade de livros como O Gaúcho e o Sertanejo
(1875) com os textos ditos indianistas. Num país ainda jovem, de proporções
continentais e de contornos políticos fluidos e conteúdos culturais em
definição, inventariar os tipos locais era a maneira mais palpável de
acessar/imaginar o “nacional”. Iniciar tal empreendimento pelas margens extremas,
ou seja, espacial e simbolicamente mais afastadas da cultura urbana do país,
vista como sucedânea local das imperfeições da sociedade burguesa europeia, é
indicativo do quanto de romantismo político havia no pensamento de Alencar: o
projeto de nação passava pelo “resgate” da pureza inicial do brasileiro, ainda
vigente, nessa perspectiva, nas periferias intocadas da civilização.
Romantismo e nacionalismo
foram, aliás, os pontos de encontro, quando da publicação do livro O Gaúcho,
entre o projeto alencariano e a produção literária da então Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, representada, em grande parte, pelos consócios da Sociedade
Partenon Literário, de Porto Alegre, fundada em 1868.4 Foi na revista do grupo
de intelectuais em sua maioria nacionalistas e republicanos, mesmo veículo em
que se defendiam ideais como o abolicionismo, que Apolinário Porto Alegre
publicou, em 1872, seu romance O Vaqueano, considerado, por muito tempo,
pela crítica especializada, uma resposta à obra e Alencar, devido às impropriedades por ele
cometidas na caracterização do gaúcho social e do Brasil meridional e as
conseqüentes deturpações das tradições locais.5 Longe disso, como mostrado por
Alexandre Lazzari, havia sim grande simpatia desse autor pela obra de Alencar: todas
as falhas de verossimilhança externa, por exemplo, causadas pela falta de
contato do escritor cearense com a realidade sulina – criticadas por Franklin
Távora, sob o pseudônimo de Sempronio, no famoso debate com o autor, ou por
escritores locais, como o pelotense Bernardo Taveira Júnior –, poderiam ser
relevadas, já que a arte, para Porto Alegre, não deveria ser refém da “ciência”
e da observação rigorosa da natureza (cf. LAZZARI, 2004, p. 141). Em biografia
literária de José de Alencar traçada para as páginas da revista do Partenon, Apolinário
Porto Alegre reconhecia a existência de problemas no livro O Gaúcho, mas
estes se deviam a questões de estilo ou de construção dos personagens. A
inadequação de Manuel Canho, protagonista do enredo, ao gaúcho mítico, centauro
da pampa, desenhado pelo próprio Alencar, seria o motivo de maior
insatisfação: excessivamente misantropo, pese a paixão avassaladora por Catita,
avesso ao convívio social e politicamente alheado, dado o envolvimento nos
preâmbulos da Guerra dos Farrapos ser mero fruto de vínculo pessoal com o
padrinho Bento Gonçalves, não condizia com o tipo planejado pelo escritor nem
com “o idealismo com que o professor Apolinário Porto Alegre desejava educar as
novas gerações” (LAZZARI, 2004, p. 143). O pecado de Alencar, para os
intelectuais do Partenon, foi, então, o de não atender totalmente às exigências
românticas de mitificação do gaúcho nacional.
De fato, a longas digressões
do escritor sobre a pampa e seus habitantes, que precedem e medeiam o enredo,
conflitam com a caracterização de seus personagens. Se o modelo de herói
enunciado remete ao ufanismo indianista precedente, a altivez inicial de Manuel
Canho acaba minorada perto de sua introspecção excessiva e ojeriza social, em
nada lembrando a nobreza de caráter algo abnegado de um Peri. Mais do que isso,
tudo se passa como se a narrativa de Alencar se dividisse em dois tempos, ao
contrário do desejado, formalmente irreconciliáveis, o do mito e o da história:
se o primeiro remete a um passado primordial, ele é também momento de
suspensão, em que o gaúcho idealizado se dilui no meio, comungando com a
natureza sua vocação ao perene; já o segundo é o tempo da ação, em que o
entrecho se desenrola e o mito, teoricamente, se materializa, ganha vida, ou
seja, é o momento de concretude, em que os fatos conhecidos da história local
dão ritmo e sustentação aos eventos narrados. É no primeiro, cabe ressaltar,
que o romantismo político de Alencar é mais latente. Assim, a descrição
exagerada da paisagem se encontra com o ideal nacionalista da “cor local”,
estabelecendo um clima geral de nostalgia do ainda não perdido ou pesar pelo
pouco que já se perdeu: “Nas margens do Uruguai, onde a civilização já babujou
a virgindade primitiva dessas regiões, perdeu o pampa seu belo nome americano.
O gaúcho, habitante da savana, dá-lhe o nome de campanha” (ALENCAR, 1971, p.
15).
As incongruências internas,
porém, não param por aí. A obra traz consigo tensões ideológicas não
resolvidas, como um General Bento Gonçalves, em breve líder da Guerra dos Farrapos
(1835-1845) 7, cioso de sua brasilidade, defensor do Império na fronteira sul,
mas imerso em relações duvidosas com o elemento castelhano. O tratamento dado
ao ícone sul-rio-grandense, que desempenha, vale lembrar, papel secundário na
narrativa, parece fruto da mesma avaliação que levou Alencar a caracterizar o “gaúcho”
como espécie de casta social transnacional. Tal indistinção implica na
figuração de um Manuel Canho em muitos sentidos mais próximo da cultura
hispânica no Prata do que do mundo brasileiro construído também em sua obra. A
percepção dessa tensão evidentemente contribuiu para o descontentamento dos
românticos da província com o texto do escritor. Para Carla Renata de Souza
Gomes, a questão é reveladora da posição “desde fora” de Alencar em relação ao
habitante da região, marcada, assim, pelo imaginário da corte, como uma “terra
de gaúchos e caudilhos”: “um território fora do alcance da lei e do rei, por
isso valhacouto de ‘rebeldes estrangeiros’, onde por suposto impera o mando do
mais forte” (GOMES, 2009, p. 240). De certa forma, é essa visão, também mediada
por leituras de textos da tradição platina8, que permite a utilização do termo “gaúcho”,
então fortemente carregado de tom pejorativo na cultura local, como sinônimo de
“rio-grandense”. O processo de gentilização do vocábulo no Rio Grande do Sul passa,
portanto, como mostrado por Carla Renata Gomes, irremediavelmente pela obra de Alencar.
*
Quero chamar a atenção, com
essa discussão, para a existência de fissuras ainda mais profundas na
narrativa: não mais entre o mito e sua personificação no enredo, mas aquelas de
ordem interna à construção do próprio “centauro”. Como vimos acima, seu desenho
é marcado pelo romantismo político, dado que a exaltação do gaúcho se justifica
por sua posição geográfica e moral de distância com a “civilização”. Tal
operação implica a ressemantização de seu designativo, pela via da positivação
de seus atributos, fundados, no texto, através da comunhão com o espaço: “Quantos
seres habitam as estepes americanas, sejam homem animal ou planta, inspiram
nelas uma alma pampa. Tem grandes virtudes essa alma. A coragem, a sobriedade,
a rapidez são indígenas da savana” (ALENCAR, 1971, p. 14). A vida no campo
reabilita, assim, a condição humana denegrida pelas relações mercantis e transmuta
o gaúcho “de pária social a ser dotado de distinta fidalguia” (GOMES, 2009, p. 252):
“Nenhum ente, porém, inspira mais energicamente a alma pampa do que o homem, o gaúcho
[grifo do autor]. De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor; tem a
velocidade da ema ou da corça; os brios do corcel e a veemência do touro”
(ALENCAR, 1971: 14). A conquista das distâncias exige desse homem mais do que o
uso do cavalo a sua irmandade com o animal: “Havia entre o gaúcho e os cavalos
verdadeiras relações sociais.
Alguns faziam parte de sua
família; outros eram seus amigos; aos mais tratava-os como camaradas ou como
simples conhecidos” (ALENCAR, 1971, p. 34). A figura do centauro emerge quase
que naturalmente do meio:
O peixe carece d’água, o pássaro do ambiente, para que
se movam e existam. Como eles o gaúcho tem um elemento, que é o cavalo. A pé
está sem seco, faltam-lhe as asas. Nele se realiza o mito da antiguidade: o
homem não passa de um busto apenas; seu corpo consiste no bruto. Uni as duas
naturezas incompletas; este ser híbrido, é o gaúcho, o centauro da América. (ALENCAR, 1971, p. 35)
Mas esse mesmo mito,
fundador de uma sociedade magiar fronteiriça, em certos momentos respinga em
brasileiros e castelhanos tanto a altivez quanto o barbarismo da vida livre,
sem lei nem rei. No capítulo IV da quarta parte do livro, por exemplo, a
personagem Catita, frente ao assédio do chileno D. Romero, desilude-se com
Canho e lamenta o sentimento dedicado a ele: “O homem por quem ela se
estremecia era o gaúcho terrível; o caráter indômito que afrontava o céu e
desdenhava do perigo; o filho da pampa, que avassalava o deserto e calcava o
mundo com a pata de seu corcel” (ALENCAR, 1971, p. 156). Parece que o mesmo
romantismo político responsável pela exaltação do “bom selvagem” pampiano
também o coloca inevitavelmente no plano do bárbaro, do “gaucho malo” platino, legenda
negra combatida na pena de Sarmiento9: “Afinal, o pampa é o plaino[grifo
da autora], o desértico, o inculto, o agreste, enfim, o incivilizado...”
(GOMES, 2009, p. 260).
Não obstante mais essa
incoerência lógica, pautada pelo olhar estigmatizante do centro sobre a
periferia, o “atraso” da pampa continua sendo sua maior virtude. Se a distância
geográfica e simbólica da civilização permite o barbarismo, ela também recupera
aquelas características humanas “naturalmente” boas sufocadas pelo progresso: “Com
isso se explica o paradoxo aparente de que o passadismo [grifo dos
autores] romântico pode ser – e, genericamente, de certa maneira, ele o é –
também um olhar para o futuro; pois a imagem de um futuro sonhado para além do
capitalismo se inscreve numa visão nostálgica de uma era pré-capitalista”
(LÖWY, SAYRE, 1993, p. 23). O “filho do deserto” é, assim, o produto do novo
mundo, quer dizer, do encontro entre a sociedade europeia viciada e o ambiente curativo,
que lhe possibilita um novo começo e um futuro promissor: “Regenerar é a missão
da América nos destinos da humanidade. Foi para esse fim, que Deus estendeu de
um pólo a outro este vasto continente, rico de todos os climas, fértil em todos
os produtos, e o escondeu por tantos séculos sob uma prega de seu manto
inconsútil” (ALENCAR, 1971, p. 99). Nesse sentido, a pampa indômita surge no
romance como um microcosmo exacerbado do continente e uma espécie de oásis às
avessas, materialmente agreste, mas moralmente profícuo:
- Fujamos deste mundo infame! Vamos para o deserto,
onde o homem é fera como tigre. Lá ninguém há de ser enganado pelo amigo e
traído pela mulher. Cada um só conta consigo; se quer um irmão tem o seu cavalo
fiel. Noiva, encontra-se no primeiro rancho: de manhã não se conhecia, à noite
já se esqueceu. Vamos, amigos, vamos aos pampas! Lá, somente lá, naquela imensidade,
poderei matar esta sede que eu sinto n’alma, esta sede de espaço, que me
sufoca. Correr!... Quero correr! Correr sem parar, correr sem fim, até que se
abra o inferno para nos devorar!...
(ALENCAR,
1971, p. 179)
As tensões lógicas e
incoerências formais do texto de Alencar nos permitem, portanto, perceber e
apreender seu projeto de invenção discursiva do Brasil, fundamentado na crítica
do velho mundo, civilizado porém desumano, bem como da lógica mercantil que se
instalava na corte. Se os mesmo olhos de cortesão, todavia, lhe levariam, em
alguns momentos, a trair o mito do centauro, grosso modo, o gaúcho, como
arquétipo e casta social, é visto como elemento regenerador. Seu arcaísmo
intrínseco, que torna o passado presente, se mostra um possível remédio para os
males do progresso e salvaguarda do porvir: “Para o romantismo, tanto os
indivíduos quanto os povos são feitos da substância do que aconteceu antes; e a
frase de Comte, que os mortos governam os vivos, exprime esse profundo desejo
de ancorar o destino do homem na fuga do tempo” (CANDIDO, 2007, p. 544).
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Fonte:
Fonte:
Jocelito Zalla: “O gaúcho de José de Alencar e a nação como projeto: ‘romantismo político’ à
brasileira?” - Nau Literária - PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre, Vol. 06, nº 02 -
Julho/Dezembro de 2010
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