15/10/2013

O Gaúcho, de José de Alencar

 Jose de Alencar - O Gaucho - Iba Mendes
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O gaúcho de José de Alencar e a nação como projeto: “romantismo político” à  brasileira?

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Mas o projeto alencariano de invenção da nação não pode ser resumido aos motivos indígenas. De certa forma, a visada nacionalista e romântica, que buscava “fundar em um passado mítico a nobreza recente do país”, estava presente em todos os textos do autor:  “De resto, Alencar, ainda fazendo ‘romance urbano’, contrapunha a moral do homem antigo à grosseria dos novos-ricos; e fazendo romance regionalista, a coragem do sertanejo às vilezas do citadino” (BOSI, 1983, p. 101). Seguindo a caracterização de romantismo político de Löwy e Sayre, poderíamos dizer que toda a obra de Alencar é perpassada por oposições ideológicas equivalentes, como passado/presente, antigo/moderno, campo/cidade, com desdobramento político semelhante, ou seja, a crítica ao progresso a partir de valores tidos como tradicionais. Daí o aproveitamento como tema, tão bem abordado por Schwarz, da condenação da mercantilização das relações sociais nos romances “urbanos”. Daí, também, o  empenho na descrição e elogio de uma pampa mítica, geograficamente distante dos grandes centros, e regida por leis quase naturais, não por acaso consonantes com as grandes questões do romance europeu, como a vingança, no livro O Gaúcho.

Tal obra configura, nesse sentido, mais um argumento contra a divisão esquemática e superficial dos textos de Alencar. Se esses compunham parte de um projeto mais amplo de “escrever a América”, o regionalismo é talvez a manifestação mais concreta da intenção de escrever o Brasil. O epíteto, semanticamente atrelado aos movimentos literários geograficamente localizados das primeiras décadas do século XX, não pode apagar a relação de continuidade de livros como O Gaúcho e o Sertanejo (1875) com os textos ditos indianistas. Num país ainda jovem, de proporções continentais e de contornos políticos fluidos e conteúdos culturais em definição, inventariar os tipos locais era a maneira mais palpável de acessar/imaginar o “nacional”. Iniciar tal empreendimento pelas margens extremas, ou seja, espacial e simbolicamente mais afastadas da cultura urbana do país, vista como sucedânea local das imperfeições da sociedade burguesa europeia, é indicativo do quanto de romantismo político havia no pensamento de Alencar: o projeto de nação passava pelo “resgate” da pureza inicial do brasileiro, ainda vigente, nessa perspectiva, nas periferias intocadas da civilização.

Romantismo e nacionalismo foram, aliás, os pontos de encontro, quando da publicação do livro O Gaúcho, entre o projeto alencariano e a produção literária da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, representada, em grande parte, pelos consócios da Sociedade Partenon Literário, de Porto Alegre, fundada em 1868.4 Foi na revista do grupo de intelectuais em sua maioria nacionalistas e republicanos, mesmo veículo em que se defendiam ideais como o abolicionismo, que Apolinário Porto Alegre publicou, em 1872, seu romance O Vaqueano, considerado, por muito tempo, pela crítica especializada, uma resposta à obra  e Alencar, devido às impropriedades por ele cometidas na caracterização do gaúcho social e do Brasil meridional e as conseqüentes deturpações das tradições locais.5 Longe disso, como mostrado por Alexandre Lazzari, havia sim grande simpatia desse autor pela obra de Alencar: todas as falhas de verossimilhança externa, por exemplo, causadas pela falta de contato do escritor cearense com a realidade sulina – criticadas por Franklin Távora, sob o pseudônimo de Sempronio, no famoso debate com o autor, ou por escritores locais, como o pelotense Bernardo Taveira Júnior –, poderiam ser relevadas, já que a arte, para Porto Alegre, não deveria ser refém da “ciência” e da observação rigorosa da natureza (cf. LAZZARI, 2004, p. 141). Em biografia literária de José de Alencar traçada para as páginas da revista do Partenon, Apolinário Porto Alegre reconhecia a existência de problemas no livro O Gaúcho, mas estes se deviam a questões de estilo ou de construção dos personagens. A inadequação de Manuel Canho, protagonista do enredo, ao gaúcho mítico, centauro da pampa, desenhado pelo próprio Alencar, seria o motivo de maior insatisfação: excessivamente misantropo, pese a paixão avassaladora por Catita, avesso ao convívio social e politicamente alheado, dado o envolvimento nos preâmbulos da Guerra dos Farrapos ser mero fruto de vínculo pessoal com o padrinho Bento Gonçalves, não condizia com o tipo planejado pelo escritor nem com “o idealismo com que o professor Apolinário Porto Alegre desejava educar as novas gerações” (LAZZARI, 2004, p. 143). O pecado de Alencar, para os intelectuais do Partenon, foi, então, o de não atender totalmente às exigências românticas de mitificação do gaúcho nacional.

De fato, a longas digressões do escritor sobre a pampa e seus habitantes, que precedem e medeiam o enredo, conflitam com a caracterização de seus personagens. Se o modelo de herói enunciado remete ao ufanismo indianista precedente, a altivez inicial de Manuel Canho acaba minorada perto de sua introspecção excessiva e ojeriza social, em nada lembrando a nobreza de caráter algo abnegado de um Peri. Mais do que isso, tudo se passa como se a narrativa de Alencar se dividisse em dois tempos, ao contrário do desejado, formalmente irreconciliáveis, o do mito e o da história: se o primeiro remete a um passado primordial, ele é também momento de suspensão, em que o gaúcho idealizado se dilui no meio, comungando com a natureza sua vocação ao perene; já o segundo é o tempo da ação, em que o entrecho se desenrola e o mito, teoricamente, se materializa, ganha vida, ou seja, é o momento de concretude, em que os fatos conhecidos da história local dão ritmo e sustentação aos eventos narrados. É no primeiro, cabe ressaltar, que o romantismo político de Alencar é mais latente. Assim, a descrição exagerada da paisagem se encontra com o ideal nacionalista da “cor local”, estabelecendo um clima geral de nostalgia do ainda não perdido ou pesar pelo pouco que já se perdeu: “Nas margens do Uruguai, onde a civilização já babujou a virgindade primitiva dessas regiões, perdeu o pampa seu belo nome americano. O gaúcho, habitante da savana, dá-lhe o nome de campanha” (ALENCAR, 1971, p. 15).

As incongruências internas, porém, não param por aí. A obra traz consigo tensões ideológicas não resolvidas, como um General Bento Gonçalves, em breve líder da Guerra dos Farrapos (1835-1845) 7, cioso de sua brasilidade, defensor do Império na fronteira sul, mas imerso em relações duvidosas com o elemento castelhano. O tratamento dado ao ícone sul-rio-grandense, que desempenha, vale lembrar, papel secundário na narrativa, parece fruto da mesma avaliação que levou Alencar a caracterizar o “gaúcho” como espécie de casta social transnacional. Tal indistinção implica na figuração de um Manuel Canho em muitos sentidos mais próximo da cultura hispânica no Prata do que do mundo brasileiro construído também em sua obra. A percepção dessa tensão evidentemente contribuiu para o descontentamento dos românticos da província com o texto do escritor. Para Carla Renata de Souza Gomes, a questão é reveladora da posição “desde fora” de Alencar em relação ao habitante da região, marcada, assim, pelo imaginário da corte, como uma “terra de gaúchos e caudilhos”: “um território fora do alcance da lei e do rei, por isso valhacouto de ‘rebeldes estrangeiros’, onde por suposto impera o mando do mais forte” (GOMES, 2009, p. 240). De certa forma, é essa visão, também mediada por leituras de textos da tradição platina8, que permite a utilização do termo “gaúcho”, então fortemente carregado de tom pejorativo na cultura local, como sinônimo de “rio-grandense”. O processo de gentilização do vocábulo no Rio Grande do Sul passa, portanto, como mostrado por Carla Renata Gomes, irremediavelmente pela obra de Alencar.
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Quero chamar a atenção, com essa discussão, para a existência de fissuras ainda mais profundas na narrativa: não mais entre o mito e sua personificação no enredo, mas aquelas de ordem interna à construção do próprio “centauro”. Como vimos acima, seu desenho é marcado pelo romantismo político, dado que a exaltação do gaúcho se justifica por sua posição geográfica e moral de distância com a “civilização”. Tal operação implica a ressemantização de seu designativo, pela via da positivação de seus atributos, fundados, no texto, através da comunhão com o espaço: “Quantos seres habitam as estepes americanas, sejam homem animal ou planta, inspiram nelas uma alma pampa. Tem grandes virtudes essa alma. A coragem, a sobriedade, a rapidez são indígenas da savana” (ALENCAR, 1971, p. 14). A vida no campo reabilita, assim, a condição humana denegrida pelas relações mercantis e transmuta o gaúcho “de pária social a ser dotado de distinta fidalguia” (GOMES, 2009, p. 252): “Nenhum ente, porém, inspira mais energicamente a alma pampa do que o homem, o gaúcho [grifo do autor]. De cada ser que povoa o deserto, toma ele o melhor; tem a velocidade da ema ou da corça; os brios do corcel e a veemência do touro” (ALENCAR, 1971: 14). A conquista das distâncias exige desse homem mais do que o uso do cavalo a sua irmandade com o animal: “Havia entre o gaúcho e os cavalos verdadeiras relações sociais.

Alguns faziam parte de sua família; outros eram seus amigos; aos mais tratava-os como camaradas ou como simples conhecidos” (ALENCAR, 1971, p. 34). A figura do centauro emerge quase que naturalmente do meio:

O peixe carece d’água, o pássaro do ambiente, para que se movam e existam. Como eles o gaúcho tem um elemento, que é o cavalo. A pé está sem seco, faltam-lhe as asas. Nele se realiza o mito da antiguidade: o homem não passa de um busto apenas; seu corpo consiste no bruto. Uni as duas naturezas incompletas; este ser híbrido, é o gaúcho, o centauro da América. (ALENCAR, 1971, p. 35)

Mas esse mesmo mito, fundador de uma sociedade magiar fronteiriça, em certos momentos respinga em brasileiros e castelhanos tanto a altivez quanto o barbarismo da vida livre, sem lei nem rei. No capítulo IV da quarta parte do livro, por exemplo, a personagem Catita, frente ao assédio do chileno D. Romero, desilude-se com Canho e lamenta o sentimento dedicado a ele: “O homem por quem ela se estremecia era o gaúcho terrível; o caráter indômito que afrontava o céu e desdenhava do perigo; o filho da pampa, que avassalava o deserto e calcava o mundo com a pata de seu corcel” (ALENCAR, 1971, p. 156). Parece que o mesmo romantismo político responsável pela exaltação do “bom selvagem” pampiano também o coloca inevitavelmente no plano do bárbaro, do “gaucho malo” platino, legenda negra combatida na pena de Sarmiento9: “Afinal, o pampa é o plaino[grifo da autora], o desértico, o inculto, o agreste, enfim, o incivilizado...” (GOMES, 2009, p. 260).

Não obstante mais essa incoerência lógica, pautada pelo olhar estigmatizante do centro sobre a periferia, o “atraso” da pampa continua sendo sua maior virtude. Se a distância geográfica e simbólica da civilização permite o barbarismo, ela também recupera aquelas características humanas “naturalmente” boas sufocadas pelo progresso: “Com isso se explica o paradoxo aparente de que o passadismo [grifo dos autores] romântico pode ser – e, genericamente, de certa maneira, ele o é – também um olhar para o futuro; pois a imagem de um futuro sonhado para além do capitalismo se inscreve numa visão nostálgica de uma era pré-capitalista” (LÖWY, SAYRE, 1993, p. 23). O “filho do deserto” é, assim, o produto do novo mundo, quer dizer, do encontro entre a sociedade europeia viciada e o ambiente curativo, que lhe possibilita um novo começo e um futuro promissor: “Regenerar é a missão da América nos destinos da humanidade. Foi para esse fim, que Deus estendeu de um pólo a outro este vasto continente, rico de todos os climas, fértil em todos os produtos, e o escondeu por tantos séculos sob uma prega de seu manto inconsútil” (ALENCAR, 1971, p. 99). Nesse sentido, a pampa indômita surge no romance como um microcosmo exacerbado do continente e uma espécie de oásis às avessas, materialmente agreste, mas moralmente profícuo:

- Fujamos deste mundo infame! Vamos para o deserto, onde o homem é fera como tigre. Lá ninguém há de ser enganado pelo amigo e traído pela mulher. Cada um só conta consigo; se quer um irmão tem o seu cavalo fiel. Noiva, encontra-se no primeiro rancho: de manhã não se conhecia, à noite já se esqueceu. Vamos, amigos, vamos aos pampas! Lá, somente lá, naquela imensidade, poderei matar esta sede que eu sinto n’alma, esta sede de espaço, que me sufoca. Correr!... Quero correr! Correr sem parar, correr sem fim, até que se abra o inferno para nos devorar!...
(ALENCAR, 1971, p. 179)

As tensões lógicas e incoerências formais do texto de Alencar nos permitem, portanto, perceber e apreender seu projeto de invenção discursiva do Brasil, fundamentado na crítica do velho mundo, civilizado porém desumano, bem como da lógica mercantil que se instalava na corte. Se os mesmo olhos de cortesão, todavia, lhe levariam, em alguns momentos, a trair o mito do centauro, grosso modo, o gaúcho, como arquétipo e casta social, é visto como elemento regenerador. Seu arcaísmo intrínseco, que torna o passado presente, se mostra um possível remédio para os males do progresso e salvaguarda do porvir: “Para o romantismo, tanto os indivíduos quanto os povos são feitos da substância do que aconteceu antes; e a frase de Comte, que os mortos governam os vivos, exprime esse profundo desejo de ancorar o destino do homem na fuga do tempo” (CANDIDO, 2007, p. 544).

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Fonte:
Jocelito Zalla: “O gaúcho de José de Alencar e a nação como projeto: ‘romantismo político’ à brasileira?” -  Nau Literária -  PPG-LET-UFRGS. Porto Alegre, Vol. 06, nº 02 - Julho/Dezembro de 2010

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